Entrevista com a professora e tradutora Enilce Albergaria

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Entrevista com a professora e tradutora Enilce Albergaria
 Daniela Aragão 19/11/2014

Entrevista com a professora e tradutora Enilce Albergaria

Daniela Aragão: Como se deu sua relação inicial com a palavra?

Enilce Albergaria: Quando eu tinha três anos de idade cantava perfeitamente "Chiquita Bacana lá da Martinica", claro que com sotaque de criança. O meu pai tinha um português muito bonito e um amor pelas palavras. Minha mãe também, que era professora e teve formação de normalista. Meu pai escrevia crônicas nos jornais de Ouro Preto antes de fazer carreira militar, quando tinha por volta de dezoito, vinte anos. Aliás, quando mais tarde passei no vestibular de Letras, ele me deu de presente a coleção "Os imortais da literatura", e as obras completas de Machado de Assis. Cresci num ambiente familiar em que não se podia falar palavrão, tanto meu pai quanto minha mãe exigiam da gente um português bem falado, na época se dizia assim. Eles investiram muito na formação dos filhos, o ensino era muito importante, prioridade. Éramos uma família de oito filhos, então me recordo de que papai nos contava histórias antes de adormecermos, e gostava muito de cantar e de nos ensinar as canções de que gostava. Minha mãe, que era dona de casa, também gostava de cantar, e apesar de ser normalista, tornou-se apenas dona de casa e dedicou seu tempo à educação dos filhos. Acho que minha relação com a linguagem vem daí, a língua materna e paterna. Esse amor pela beleza da língua, o gosto das palavras, o saborear das palavras me vem dessa infância e dos meus pais. Também o gosto pela música me vem deles, nasci em São João del-Rei e meus pais nos levavam aos domingos na praça, onde havia um coreto, pela manhã, e ouvíamos concertos. Nos finais de semana também íamos nadar em Água Santa, nos arredores de São João Del Rei, era uma cachoeira. Era uma vida muito ligada às coisas essenciais, à natureza, à música, à palavra, às histórias e à ficção. Me recordo de que andávamos no Maria Fumaça até Tiradentes. Quando mudamos para Juiz de Fora fazíamos o passeio de domingo, que consistia em ir até Matias Barbosa de trem olhando as paisagens, enquanto no percurso papai nos contava histórias. O contato orgânico com a natureza, o corpo, a arte. Minha mãe era uma mulher que desenhava, pintava, fazia flores de pano, de couro. Criava broches de flores, enfeites diversos. Ela fazia crochê, tricô, costurava e inventava coisas muito bonitas. Há pouco tempo voltei a São João del-Rei com minhas irmãs, pois queria que minha irmã mais velha me contasse com mais detalhes como foi minha infância lá. Nasci numa casa ao lado da igreja do Carmo, e essa casa é antiga. Ainda está lá e foi restaurada. Nessa casa tinha um porão, algo interessante, pois o porão é uma espécie de mundo das sombras, um inconsciente que está ali dentro. A casa fica numa esquina e na outra esquina fica a Sinfônica de São João del-Rei. Minha irmã já cantava na época no coral da Orquestra Sinfônica de São João del-Rei. Me veio à memória ela cantando e fiquei pensando que ouvi música desde quando estava no útero de minha mãe. Acho que é muito importante a beleza da cidade. Nasci naquele velho centro histórico da igreja do Carmo, que atualmente está todo restaurado. Brinquei muito ao redor dessa igreja. Eu me recordo de todo o lado do sagrado, das procissões, das missas cantadas, toda essa construção do imaginário conduzida pela beleza. Acho que a beleza constrói um imaginário. Não existe separação entre o que está fora e o que está dentro. Nós somos construídos pelo que vemos e penetrados pelo mundo externo e nesse sentido a beleza que compõe uma cidade é muito importante. Morar na beleza constrói um imaginário diferenciado, amante da beleza. A gente tem necessidade interna da beleza. Então é muito triste você ver o descaso das cidades, Juiz de Fora é uma cidade muito maltratada. A beleza não é a prioridade, é a coisa utilitária, a força da grana "que destrói mais que constrói coisas belas". Onde o dinheiro manda sem o princípio da ética e da beleza, sem que os seres humanos sejam a prioridade é terrível para o imaginário, para a interioridade e a construção psicológica dos indivíduos. Para a própria individualidade cultural dos indivíduos e da cidade. A subjetividade tanto individual quanto coletiva sofre com essas mazelas, com esse descaso pela beleza. Fica difícil alçar o vôo.

Daniela Aragão: Você se formou em letras e posteriormente ganhou uma bolsa para dar prosseguimento aos seus estudos na França.

Enilce Albergaria: Quando fui fazer vestibular já estudava francês na Aliança Francesa, desde a época em que ainda era estudante na Escola Normal. A princípio fiquei em dúvida entre letras ou jornalismo e na verdade acabei optando por letras, porque acho que me guiei por aquela história de que naquela época era mais fácil para uma mulher ser professora. O mercado de trabalho para jornalistas mulheres ainda não estava fácil. Estudei letras e foi um mergulho nas línguas, tanto na minha língua, quanto no francês. Estudei quatro anos com Lucy Magalhães, que se tornou minha amiga pessoal e a pessoa com quem hoje traduzo. Quando estudava letras comecei a frequentar um grupo de teatro denominado "Cena", parte dele era formada por pessoas como Arlindo Daibert, que era meu colega de sala. Era um grupo independente. Primeiro começamos a nos reunir no DCE e me recordo de que fizemos alguns encontros também na Galeria de Arte Celina. Era um grupo formado por alunos dos mais diferentes cursos, além do Arlindo tinha o Domício, que hoje é regente de coral, Marta Sirimarco que fazia teatro, o Guedes que era da Federal também. Neuza Salim, Neísa Campos, Lucy Magalhães, Lucília e Paulo Tarso, meu irmão Enísio, que estudou direito na UFJF e veio a se tornar líder sindical na Cesama. Depois montamos "Hoje é dia de rock", de José Vicente. Nós fazíamos muitas discussões, e foi muito interessante, pois nós trouxemos um diretor do Rio de Janeiro. Ele vinha nos finais de semana, nos dava algumas diretrizes e depois nós nos encontrávamos e trabalhávamos a partir das sugestões dele. A proposta era fazer uma montagem coletiva, então tudo era discutido em conjunto. Foi uma experiência muito linda, era a época da contracultura. Eu fazia parte dessa turma, mas frequentava também outro grupo engajado na luta contra a ditadura. Nós todos estávamos envolvidos nesse clima contra a ditadura, mas existiam diferentes posturas. Alguns eram mais militantes, outros tinham mais um comportamento hippie, influenciados pela atmosfera da contracultura. Nós trabalhamos com dois elencos, ou seja, dois atores ou atrizes faziam o mesmo personagem. Então os elencos se alternavam nos ensaios, e, em seguida, nas apresentações porque o que queríamos era trabalhar o teatro. Nessa diversificação dos atores e atrizes, que se processava na alternância do elenco, criou-se uma rica experiência, pois aprendíamos com o outro. A construção de um personagem era diferente de um ator para o outro. "Hoje é dia de rock" tinha muitas músicas, e nós cantávamos nesse espetáculo que contava a história de uma família do interior de Minas no qual os filhos vivenciam a transformação dos valores que influenciaram a juventude do mundo nos anos 70. Quando terminou essa peça, um ano depois ganhei uma bolsa da embaixada da França para ir estudar linguística. Como vê, sempre a linguagem esteve muito presente. Fui então para a universidade de Toulouse, Le Mirail. Cheguei lá no final dos anos setenta para fazer o mestrado em "Linguística aplicada ao estudo do francês" e estudei também sociolinguística, psicolinguística, linguística aplicada à literatura, enfim, era uma formação diversificada. Na universidade de Toulouse Le Mirail, na quarta feira à tarde, não havia aulas, só ateliês de pintura, fotografia, teatro, teatro de marionetes, cinema, enfim, um momento cultural, uma tarde dedicada às artes. Conhecíamos alunos de outros cursos nesse espaço de encontros e criação artística. Até hoje fico impressionada em constatar a quase falta dessas atividades no nosso Campus da UFJF, e o quanto precisaríamos ampliar as atividades culturais, ter uma sala de cinema, por exemplo, um teatro... Como que a nossa cidade que possui uma universidade federal, e várias particulares, não possui uma programação de cinema "sétima arte", um cinema estético, reflexivo, que não tem nada a ver com esse cinema mercadológico, sinônimo de divertimento, que está, infelizmente, vigorando na cidade. Cadeias comerciais de São Paulo compraram os cinemas de Juiz de Fora, e, frequentemente, temos o mesmo filme sendo exibido em mais de uma sala, porque detém o monopólio do mercado de distribuição. Um absurdo em termos culturais! Já houve abaixo assinado feito pelos cidadãos e cidadãs que lutam contra este monopólio, mas nada se faz, nada foi feito pelo poder público nesse sentido, e a cidade continua à margem, excluída do acesso à "sétima arte".

Daniela Aragão: E aqui já foi uma cidade em que se discutia cinema, meu tio Luiz Affonso Pedreira inclusive foi um dos fundadores do Clube de Cinema, o CEC- Centro de estudos cinematográficos de Juiz de Fora. Há um registro interessante dessa efervescência cinematográfica vivida em Juiz de Fora no livro "Memórias do cineclubismo", de Haydêe Sant'Anna e Christina Musse. É lamentável mesmo, mas isso não ocorre somente em Juiz de Fora, de certa maneira é um reflexo da mercantilização que atinge todas as instâncias.

Enilce Albergaria: Como estudante na França pude frequentar muito o cinema. O fato de a cultura ser financiada pelo estado, pela região e município, como é na França, permite também a implementação de uma política de adaptação do preço das entradas ao público alvo. Cheguei em Toulouse num momento de grande efervescência cultural: eram muitos encontros, discussões, passeatas. Para mim foi uma descoberta de muita coisa. Depois dos ateliers do teatro universitário, com o diretor René Gouzenne, trabalhei com Jackie Schön, minha professora de linguística na universidade, e que escreveu uma peça de teatro, um monólogo para que eu o representasse, um belo texto poético, no qual predominam a força das imagens metafóricas construídas a partir do elemento água. Um belo texto no qual há muitas imagens ligadas ao oceano e ao seu incessante e impetuoso movimento, o ritmo do tempo das ondas do mar. A autora explorou o universo dos mares, oceanos e embarcações para falar de uma viagem de amor. É uma história de amor entre duas pessoas que irão se separar em função de uma terceira. Ela escreveu o texto e me dirigiu na montagem do espetáculo juntamente com Dalton Canabrava Filho, mineiro que também morava em Toulouse e estudava geografia na universidade. Ele trabalhou mais diretamente na relação entre o corpo e o espaço, enquanto Jackie trabalhou comigo o texto. Vivi essa experiência linguística e teatral, que para mim foi muito rica, da própria autora me dirigir e trabalhar a minha voz, a minha interpretação para extrair de mim toda a beleza e expressividade de seu texto. Na verdade quando você faz teatro você tem que colocar o texto em seu corpo: é uma incorporação no sentido pleno. Levamos um ano e meio para montar esse monólogo. Eu estudava ao mesmo tempo na universidade. Ensaiamos na Cave Poésie, e depois apresentei esse espetáculo no festival de Avignon, em um teatro pequeno com uns trinta lugares. Em seguida em Paris, e no Rio, na Aliança Francesa de Botafogo. Fiz também uma apresentação em Juiz de Fora, no Fórum da Cultura. Esse foi um trabalho que exigiu muito de mim, um trabalho novamente com a linguagem. Sempre o texto e dizer textos, dar voz ao texto. O desafio desse monólogo era que eu fazia três personagens. Era um texto literário poético dito no palco como se fora um diálogo entre três personagens. Então eu tinha que dizer as frases poéticas inserido-as na oralidade do diálogo. Não era dito como um texto literário em prosa. Era como se as três personagens conversassem belamente numa língua erudita, poética, de uma grande beleza. Eu tinha então que inserir a entonação e a prosódia do diálogo em língua francesa no texto literário. Foi bastante complexo e, às vezes, eu achava que não ia conseguir. Mas na medida em que ensaiávamos e que eu me apoderava do texto, ele foi se construindo em mim...

Daniela Aragão: Você viveu quantos anos na França?

Enilce Albergaria: Dezessete anos. Depois do mestrado preparei o "Diplôme d´Études Approfondies", ainda em linguística aplicada ao ensino do francês, língua estrangeira; e depois migrei para a semântica: minha paixão pelas palavras me levou ao estudo da semântica. Cheguei a iniciar um doutorado em Toulouse em que trabalhava os verbos e expressões de sentimento em francês e em português em um estudo comparado. Cheguei a cursar esse doutorado durante quase dois anos, mas não dei conta de prosseguir junto com o teatro. Antes disso, eu tinha ido viver um tempo em Paris e lá trabalhei com a diretora Luce Berthomé, no Théâtre Lucernaire, Centre d´Art et d´Expérimentation. Nós montamos a peça Pour Thomas, escrita por Christian Le Guillochet. Nós éramos dezessete atores e a peça tinha a duração de duas horas. Tratava-se de uma saga sobre uma família francesa. No início da peça eu tinha cinco anos de idade, e ao final, 93 anos! Eu representava a governanta da casa e fazia o papel de uma italiana. É a história da França que é narrada através dessa família desde a época da revolução francesa até maio de 68. Depois fui fazer teatro de objetos com o teatro Caroube, em Toulouse. Havia conhecido uma das líderes do grupo, Isabelle Paget, no atelier de marionetes onde ela dava aulas e que eu cursava na universidade, às 4as feiras. O grupo Caroube trabalhava a partir de improvisações. Faziam um teatro surrealista e dadaísta. Eram artistas plásticos, pintores, escultores, músicos. Trabalhavam o espetáculo como se fosse um videoclipe. Era um teatro de síntese entre a plasticidade da pintura e da iluminação, o corpo do ator, o texto e a música. O espetáculo "Nature Morte", por exemplo, era todo ritmado, o texto era musicado, e a gravação dava o ritmo ao espetáculo, sendo uma espécie de fio condutor que regia as imagens. Viemos ao Brasil com esta peça numa tournée financiada pelo Ministério da Cultura da França. Nós a apresentamos no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, aqui em Juiz de Fora. Em seguida, moramos em Salvador durante um ano e lá montamos uma peça intitulada "Viva", construída a base de improvisações a partir de uma releitura crítica da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que, na nossa peça se iniciava com a frase "Todo homem é um lobo para o homem". Depois de um ano de montagem em Salvador, fizemos, igualmente, uma tournée no Brasil. Em seguida, voltamos para a França onde apresentamos "Viva". Como éramos muitos atores e atrizes no grupo, com a subvenção que recebíamos da Direction Régionale d´Action Culturelle não tínhamos mais verba suficiente para montar um novo espetáculo e pagarmos os nossos salários. Então, o nosso grupo teve que declarar falência, e eu fui trabalhar novamente com a linguagem. Trabalhei com marketing, nas entrevistas de análise quantitativa. Em pleno inverno, mês de janeiro, fevereiro, eu tinha que acordar muito cedo, por volta das quatro da manhã, para estar na praça do Capitole, praça central da cidade de Toulouse, às cinco da manhã e começar a entrevistar as pessoas. Comecei a fazer essas entrevistas até que uma diretora da sociedade de marketing viu que eu havia feito mestrado em linguística e que tinha experiência com o teatro. Em decorrência disso, ela me propôs fazer uma formação na cidade de Bordeaux, estudando e trabalhando com uma socióloga responsável pela análise qualitativa na sociedade de marketing, atividade que trabalha diretamente com o discurso. Capacitei-me então para trabalhar com análise qualitativa em marketing, e animar reuniões de grupos acerca de um produto. Cada grupo, sentado em torno de uma mesa, tinha em torno de 15 participantes, e, através de diferentes estratégias discursivas e de jogos, eu os levava a falar durante quase umas cinco horas a respeito do consumo de determinado produto: água mineral, chocolate, turismo na montanha, etc.: qualquer produto vendável. Na verdade o objetivo era captar o discurso espontâneo dos participantes.

Daniela Aragão: Você vem narrando até aqui um longo percurso de existência e permanência na França. Li faz cerca de duas semanas uma matéria realizada com você no jornal Tribuna de Minas, em que declara ao jornalista Mauro Morais seu sentimento de permanente deslocamento. Uma espécie de vivência inexorável do sentido da cisão entre a terra mãe, o Brasil, e a terra adotada por afeto e identidade, a França. Como ficava o seu sentimento de brasilidade estando fora do país?

Enilce Albergaria: O Brasil estava essencialmente nos telefonemas que eu fazia para o Brasil para conversar com meus pais e meus irmãos e irmãs. Da primeira vez que fui para a França demorei três anos para voltar, pois não tinha dinheiro. Nos anos seguintes comecei a vir anualmente para passar um mês. Sempre aquele sentimento da chegada e da partida. Permanece a imagem de minha mãe me olhando no momento de minha partida; era muito difícil. Minha família morava num apartamento na Rua Santo Antônio e como a rodoviária era ainda na Av. Rio Branco, minha mãe ficava me olhando do terraço e eu lhe dando adeus até o momento da partida do ônibus para o Rio. Era sempre muito doloroso partir. Quando voltava tinha aquela coisa bonita, era recebida com almoço familiar, festa. Meus amigos de Juiz de Fora também me recebiam. Eu partia sempre com o coração partido. E quando eu estava no avião já vinham outras imagens da minha outra vida, do outro lado do Atlântico que iam me invadindo...Na verdade eu pertenço a duas línguas, dois países, duas culturas. Cada vez eu ficava acabada de ter que partir. E quando vim morar no Brasil, vivi o mesmo sentimento em relação à França. Um tempo depois que eu já trabalhava com marketing e dava aulas de francês no Centre d´Études de Français pour les Étrangers, na Universidade de Toulouse, Le Mirail, onde eu estudei, minha mãe me inscreveu para fazer o concurso, na UFJF, para ministrar língua e literatura francesa. E foi assim, então, que retornei para viver no Brasil. Minha mãe ficava apreensiva com minha vida no exterior, longe da família. Sabia que meu grupo de teatro havia falido e que eu estava trabalhando com marketing; e ela pensava que eu tinha que ter um trabalho que me trouxesse estabilidade. Naquela época a Europa já estava entrando em crise, os contratos de trabalho nem sempre eram renovados, e a situação do emprego estava começando a ficar precária. Além disso, minha mãe queria que eu voltasse. Ela me trouxe de volta.

Daniela Aragão: Então você é aprovada no concurso para professora de língua francesa da Universidade Federal de Juiz de Fora e volta para o Brasil.

Enilce Albergaria: Depois dessa longa travessia cultural e linguística em que a língua francesa se torna minha língua de expressão, volto a Juiz de Fora, passo no concurso aqui, e me torno professora da universidade. Trabalho com a língua francesa na graduação e na pós graduação. Eu fiz doutorado na USP em estudos comparados de literatura de língua portuguesa, e na minha tese discuto a questão da identidade cultural a partir das discussões propostas, entre outros, por Édouard Glissant, o autor que vim a traduzir, posteriormente.

Daniela Aragão: Você acaba se tornando a única tradutora no Brasil de Glissant.

Enilce Albergaria: Sim. Ele tem uma discussão crítica muito interessante sobre a questão da identidade cultural nas Américas marcadas pela presença africana, e sobre o encontro das culturas e das línguas no mundo globalizado. Ele defende a importância de se lutar pela diversidade cultural e linguística, que são a riqueza do nosso planeta, contra a tendência capitalista à uniformização das culturas e das línguas. As línguas estão morrendo, muitas línguas morrem hoje no mundo. Glissant discute também a importância das artes e o papel do artista na defesa da identidade cultural e linguística na convergência das culturas hoje no mundo. Ele diz o seguinte: "Age no teu lugar e pensa com o mundo". Hoje a defesa do local passa pela defesa de todas as culturas do mundo. O ter que estar em sincronia com a totalidade-terra para pensar o seu local. A arte tem um lócus enunciativo, e o artista visionário articula o seu local com as problemáticas e paisagens de outras culturas do mundo. Esse é o grande desafio da resistência hoje porque a arte dá visibilidade ao que está acontecendo no seu lugar e em outras culturas. É grande a responsabilidade do artista neste mundo em que tudo está se tornando mercadoria, inclusive os seres humanos, a água, as sementes, a natureza...

Daniela Aragão: No dia 21 de novembro, às 19h30 , você lança em Juiz de Fora, no Museu de Arte Murilo Mendes, o seu Cd "Traversée Entre Margens". Neste Cd você resgata as canções da parceria teatral com Jackie Schön e convida o músico Estevão Teixeira para fazer os arranjos e a direção musical. De certa maneira você reelabora essa sua travessia.

Enilce Albergaria: Certamente é uma reelaboração, um reencontro desses dois mundos. Aqui na universidade sempre fiz leituras de peças teatrais com os alunos. Montei "A Mesa", uma montagem construída a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade. Pude desenvolver alguns projetos também quando estive na Coordenação do Polo de Cultura da Casa de Cultura da UFJF. Elaborei e coordenei, em parceria com a Embaixada da França e a Funalfa, o projeto França-Brasil, que trouxe muitas manifestações artísticas para Juiz de Fora em 2009, Ano da França no Brasil. Quando deixei a França, embora estivesse na ocasião trabalhando com marketing, havia a proposta de eu encenar a peça que se chamaria "Caméléon", que é a primeira música do cd. O tema narra a travessia de um personagem entre duas culturas. O que é viver no estrangeiro, ter que se metamorfosear. Esse personagem que vai viver muitas perdas culturais terá de se fazer muito pequenininho para construir o seu espaço e passar a existir no olhar dos outros com o qual ele vai se reconstruir no estrangeiro. Esse personagem é fragilizado pela ausência das suas referências culturais: chega na terra estrangeira despojado de sua língua, de seu solo e tem que se refazer e se construir afetivamente, culturalmente, linguisticamente, enfim é uma reconstrução.

Daniela Aragão: Possivelmente com a feitura deste CD você tenha conseguido elaborar o fechamento de um ciclo.

Enilce Albergaria: Eu me recordo de algumas crises de identidade que tive na França ao fim dos quatro primeiros anos. Eu não sabia mais quem eu era. Tinha dúvidas sobre o que de fato queria fazer, se queria permanecer ali, fazer minha vida, realmente, ali. E voltar para onde? E porque não conviver com outra cultura e outra língua? Por que não ir, por exemplo, para a China, Pequim? Olha que loucura (risos). Passei por uma fase assim, sem pertencimento, sem lugar cultural. Eu estava construindo um lugar cultural lá, mas ainda sem sentir um novo pertencimento, e o Brasil estava um tanto diáfano... Hoje, eu analiso que eu estava vivenciando em minha identidade cultural o processo de dilatação rumo a outras culturas e outras línguas que eu havia iniciado ao atravessar o oceano..,

Daniela Aragão: Possivelmente aconteceu um apagamento inconsciente de suas raízes, como estratégia de sobrevivência mesmo na França. A incorporação daquela alteridade implicou a princípio uma necessidade de anulação mesmo que temporária de suas raízes.

Enilce Albergaria: Exato. Estava meio solta no ar construindo meu chão. Foram processos difíceis. E a raíz identitária não é raiz única, mas sim raiz rizoma, segundo Glissant, ou seja, a identidade é impermanente, sempre em processo de reelaboração.

Daniela Aragão: Seu disco é de uma extrema delicadeza e traz uma dor incutida. Estevão foi cuidadoso e perspicaz na elaboração dos arranjos, soube captar o lirismo acrescido de certo ar lúdico, digamos a faceta mais teatral. Às vezes numa dinâmica mais entusiasta a gente lembra de Nino Rota, outros momentos mergulhos mais introspectivos como na bela "Voyage". É um disco de nuances e com uma linguagem atual, acho esse o ponto alto do trabalho. Não ficou déjà vu, se coloca no tempo de hoje.

Enilce Albergaria: Essa peça de teatro que foi escrita para mim, e que eu não montei, resultou neste disco Traversée Entre Margens. Traversée tem aqui um duplo sentido: é a travessia e é também aquela que é atravessada por duas culturas. As letras são de Jackie Schön e as melodias de Anita Nadal, que vivem em Toulouse. As canções narram a partir do ponto de vista do estrangeiro, ou do olhar do outro, o personagem do estrangeiro, sua subjetividade, suas transformações camaleônicas; falam também da perda e do abandono, da espera, da possível casa sonhada.... O estrangeiro está sempre sonhando com a sua casa, com um possível retorno a sua terra natal. Sonha com a volta, mas, na verdade, ela é impossível, pois ele já se transformou. Não existe o retorno, e caso retorne se sentirá um tanto diferente, vivenciando uma espécie de estranhamento também na terra de onde saiu. Há então um distanciamento entre você e a sua cultura original, uma vez que você partiu. O seu "espaço" cultural é esse "entre-lugar", você fica numa região fronteiriça. Na terceira margem, ou entre margens, é que você ganha esse distanciamento que te permite olhar criticamente para as duas culturas.

Daniela Aragão: E isso aguça o olhar que vive numa permanente inquietude. Sendo permanentemente estrangeiro, você está também sempre alerta.

Enilce Albergaria: É complicado, pois é uma espécie de vivência na falta. Falta sempre algo.


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.