Considerando
Considerando: Edu e Tom
Como é manhã de janeiro com céu muito azul e sol quente, ouço as crianças do prédio vizinho fazendo mil arruaças nesse momento "refrescante" de férias. Ponho para tocar "O grande circo místico", obra prima da parceria Edu Lobo e Chico Buarque e tento ao menos em minha imaginação apaziguá-las com um banho de lirismo. Começo por "A história de Lily Braun", a gravação definitiva de Gal Costa que embalou boa parte de meus sonhos adolescentes: "Como num romance/O homem dos meus sonhos/Me apareceu no dancing/Era mais um/Só que num relance/Os seus olhos me chuparam/feito um zoom". Colocava na vitrola essa faixa para tocar inúmeras vezes e ficava tentando reproduzir da melhor maneira possível os agudos afinados e extensos que Gal brilhantemente ia entoando no final da canção. Certamente é uma aula de música ouvi-la acompanhada pela pulsante Big Band. Não sei qual impulso motivou décadas após este primeiro registro, a regravação quase simultânea desta música pelas cantoras Maria Gadú, Maria Rita e Mônica Salmaso. Há músicas que subitamente readquirem valor num revival Cult, vá lá entender. Cada uma com sua leitura própria, mas que a meu ver ficam aquém da versão original. Parece-me que faltam nas novas versões o brilho e o vigor que Gal conseguiu alcançar, possivelmente devido ao fato de que sua gravação fazia parte de um amplo contexto, ou seja, a história do álbum "O grande circo místico".
A parceria entre Edu Lobo e Chico Buarque não se esgota em "O grande circo místico". Continua em outras peças como "O corsário do Rei", "Dança da meia-lua" e "Cambaio", além de uma profusão de composições sublimes como "Choro bandido", "Valsa Brasileira" e "Moto contínuo".
Percorrer a fundo a obra deste engenhoso músico demanda entrega e sobretudo apuração auditiva, Edu Lobo é um ourives da música que lapida suas preciosidades com a precisão de um ourives. "Limite das águas", lançado ainda no formato LP em 1976, é uma obra impecável do começo ao fim. Junto com Maurício Maestro, Edu divide a responsabilidade pelos arranjos e orquestração, enquanto a regência fica por conta do maestro Lindolfo Gaia. "Considerando", composição que dá título ao álbum é simplesmente uma obra prima com os versos densos e de feição confessional de Capinam: "Considerando o naufrágio/A rotina dos barcos/Eu me achei no direito/De ao menos, pedir/Tempo claro pro meu rumo/E nos temporais da febre/De quem fuma, de quem bebe/As longas noites vazias// Eu sou o homem comum/Eu sou a mulher da rua/O vagabundo poeta/O navegante da lua".
Aos 33 anos, Edu Lobo demonstrava o amadurecimento musical e existencial adquirido ao longo do percurso, tanto que cinco anos depois, gravou com produção e direção de Aloysio de Oliveira um disco monumental ao lado de nada menos que Tom Jobim. Edu dialoga com o refinamento de Tom e suas concepções de improvisos leves. O casamento musical desses dois estupendos músicos resulta numa das obras referenciais da história de nosso cancioneiro nacional. O belo timbre de Edu, que canta muitíssimo bem, soa bonito demais em contraste com o registro grave da voz de Tom. O encontro destes dois pilares da música moderna brasileira marcou uma sorte de união entre professor e aluno, num clima de cordialidade e admiração mútua: "De todos os arquitetos da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito. Dele surgem projetos sólidos, feitos para abrigar os corações do mundo". "O Edu é um compositor fabuloso, formidável. É, extraordinário, no Edu, essa brasilidade dele. A gente vê uma pessoa empenhada em construir uma obra".
Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.