Entrevista com a fot?grafa Nina Mello
Entrevista com a fotógrafa Nina Mello
Nina Mello: A questão da imagem surgiu de uma forma muito interessante. Eu estava na rua com meu amigo Big Charles, andávamos muito juntos pelas ruas de Juiz de Fora no final dos anos oitenta. Eu ficava impressionada ao olhar as coisas, pois sabia que o meu olhar era de um jeito e o da outra pessoa de outro. Isso foi me suscitando a questão da fotografia, você olha por exemplo esta xícara, para você ela representa algo, para mim outro.
Comecei a pensar que a fotografia poderia me inquietar ainda mais nesse sentido. Além do fato de que eu já tinha estudado história, outros cursos e em nada eu conseguia me encontrar. E fiquei me questionando sobre qual seria o meu caminho, pois eu precisava de trabalhar. Daí a fotografia foi acontecendo, comprei de um amigo biólogo uma Pentax K 1000 que ele usava para campo. A câmera para ele não tinha mais muita função e comprei, mas na condição de devolvê-la a ele quando eu resolvesse adquirir outra. Isso aconteceu de fato.
Comprei a K1000 entrei para o jornal "Diário da Manhã" para cobrir umas férias que a editora Lilian Pace me chamou e fiquei por lá um mês. A fotografia aconteceu para mim dentro do fotojornalismo, aprendi a fotografar dentro de uma redação. Dali comecei, pois veio o Cerezo que me chamou para fazer um teste para ojornal "Tribuna de Minas". Fui contratada e fiquei por volta de uns oito a dez anos ao todo. Pedi demissão e continuei cobrindo férias e já com um estúdio e meio afastada daquilo, pois fui percebendo que não era mais o que eu queria.
Abri um estúdio e não continuei mais trabalhando em jornal diário, mas em jornal cooperativo prestando serviço para assessoria. Nesse momento a fotografia era uma coisa mais objetiva, mais imediata devido aos imperativos do fotojornalismo. Essas questões que foram me afligindo e me afastando desse tipo de trabalho.
Daniela Aragão: Você foi tendo a necessidade de construir um trabalho mais autoral?
Nina Mello: Tive bons colegas de trabalho que me ensinaram bastante. Quando fui para o estúdio eu já concentrava forças para realizar o meu próprio trabalho. Mas não era fácil, eu precisava continuar trabalhando. Prestei muito tempo serviço para empresas fazendo jornal cooperativo. Depois fui fazer faculdade de jornalismo,após vinte anos no exercício da profissão e acabei descobrindo que não era mesmo o que eu pretendia continuar enquanto modalidade de trabalho com a fotografia.
No "Espaço Experimental Nina Mello", que abri em 2009 em São Pedro, comecei a trabalhar o trabalho do outro. O espaço aconteceu de uma forma muito inusitada, pois eu precisava de um lugar para colocar minhas coisas. Quando pintei, arrumei a sala, percebi que o espaço não era para guardar nada, mas seria um lugar em que se poderia pensar a fotografia. Comecei a fazer exposições, cursos, muito focada no outro acabei esquecendo de meu próprio trabalho.
Daniela Aragão: Você começou a dar cursos de fotografia?
Nina Mello: Eu já dava. Ministrei um na semana de biologia por intermédio de um amigo. O uso da fotografia é algo muito amplo. O pessoal da biologia utiliza muito a fotografia para campo. Dei curso também para os estudantes de odontologia, que também fazem muito uso da imagem. Comecei a montar meus cursos de técnica para iniciantes. Então dei continuidade, mas vendo que o autoral e o artístico era onde eu me encontrava mais.
Daniela Aragão: E com a mudança para o CasaVinteum – Espaço Experimental
Nina Mello: Aumentei o espaço físico, a condição de receber e me tomou a vontade de novamente de me voltar para o meu próprio trabalho. A estrutura da casa é bacana para poder trabalhar. Entrei com um projeto na Lei Murilo Mendes com um livro idealizado por mim, chama-se Senescência.
Daniela Aragão: Fale sobre este livro.
Nina Mello: O tema "flores" me persegue há muitos anos. Minha primeira exposição foi em 2000 com o tema flores, mas dentro de um apuro técnico, com luzes dirigidas, todo preto e branco. Foi um trabalho super bonito. As flores num estado muito viril, muito vivas. Eu vindo do estágio do analógico, essa passagem me desconcertou muito, pois sou do papel, do tato. Dentro do analógico você fotografa, tem um tempo, pois você não vê de imediato. O processo de você olhar cada fotograma, que é muito diferente do digital. Diferente até na postura corporal, pois a postura que você utiliza é diferente.
A Senescência veio meio que fechando esse ciclo do tema, a passagem do analógico para o digital e a cor. A Senescência é um termo biológico (a biologia está sempre perto) que significa a morte pela exaustão das células. Quando ela termina sua função sexual é que as flores começam a morrer. Na verdade não foi um projeto arquitetado, foi acontecendo. Eu estava com um jarro de rosas em casa lindo e as flores foram começando a morrer. Isso começou a me chamar atenção, até eu entender o trabalho me demandou um tempo. Compreender o que era senescência, o que verdadeiramente me chamava a atenção ali, que era a finitude da vida, o processo de amadurecimento, a transição. Me lembrei de "Todos os homens são mortais", de Simone de Beauvoir. Trata exatamente de um personagem que vive ad infinitum e não suporta mais aquilo, ele está angustiado de tanta vida.
A Senescência representa tudo isso para mim, a transição, o encerramento de um ciclo e início de outro, a morte e o amadurecimento. A técnica naquele instante não era mais minha condutora, o que me levava era a relação que eu tinha com o objeto. O importante era perceber como as coisas aconteciam, fotografar com a luz natural, não tinha mais a luz dirigida. Era a situação que elas estavam. Quando achei esteticamente o que eu queria fazer foi bárbaro.
Como venho do fotojornalismo, a técnica para mim sempre foi muito importante, eu precisava ter um conhecimento técnico. Faça sol, faça chuva, tenha ou não luz, você tem que chegar com a imagem daquela pauta. A técnica me auxiliou nesse sentido, mas ao mesmo tempo me deu mais liberdade para me afastar e construir as narrativas que eu queria, sem possuir a necessidade de ter um registro técnico. Isso também mudou muito o meu entendimento da fotografia. Comecei a fotografar as flores em 2012 e terminei no final de 2013.
Daniela Aragão: Você acompanhou várias flores?
Nina Mello: Sim, várias flores que estavam em minha casa. Flores sempre foram muito presentes em minha vida desde criança, isso veio de minha mãe. Sempre gostei de ter flores em casa. Eu colocava as flores, cada uma em seu processo ia murchando e com seu significado próprio. As rosas foram as mais difíceis de fotografar, pois o processo de Senescência delas é longo. Fiz a exposição e pude trazer toda a minha relação com a fotografia, o processo fotográfico do laboratório, da cor.
Daniela Aragão:Você manteve as flores com suas cores?
Nina Mello: Tudo com a cor natural delas. Estourei muito as imagens, tinha muito branco, muito vazio. Explorei outro suportes. Sandra Sato fez a curadoria e trouxemos a questão do laboratório com as cores primárias, um experimento de impressão em outros suportes. Então teve muita transparência. As relações entre a vida e a morte. A água, acredito muito nesse princípio da vida com a água. Tinham muitos jarros com transparência dentro. Tinha impressão em acrílico, papel de algodão. As cópias eram únicas, portanto eu queria que o trabalho se encerrasse ali.
Daniela Aragão: Esse trabalho depurado que a levou a acompanhar vários percursos de vida das flores sofreu a adaptação para o formato de fotolivro não é?
Nina Mello: Exatamente. Em seguida veio o fotolivro, que é uma forma que tem me chamado muito minha atenção. Acho que hoje, quando pensamos na tecnologia, na quantidade de imagens que estamos fazendo, na memória, sinto que cada vez mais ela está indo embora. Está se tornando muito efêmera.
O livro vem concretizar um pouco, pois entra com esse caráter de permanência. Há a circulação, o tato, pois é um objeto que você pega, manuseia. Entendo o livro também como um novo espaço de exposição, uma nova leitura. É um espaço em que você pode criar muito.
Daniela Aragão: O livro garante essa série de fatores que nos colocam de volta em contato com a tradição da fotografia, traz a retomada da possibilidade do tato, da palpabilidade, de certa concretude. No entanto você não acha que há uma perda na transposição do trabalho exposto para o formato de papel? Recordo-me de um trabalho muito interessante que aconteceu alguns anos seguidos no Rio de Janeiro, no Paço Imperial. Chamava-se "O som vivo de", em que cerca de 70 artistas plásticos debruçavam-se sobre a criação de um artista da música popular brasileira. Fizeram sobre canções de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, entre outros. O expectador tinha acesso a um fone que tocava a canção, enquanto via a interpretação plástica correspondente. Muitas vezes os artistas plásticos trabalhavam na seara conceitual. Como pude ver os dois processos, deparei com meu próprio estranhamento diante de uma instalação que representava uma canção de Chico Buarque miniaturizada no livro.
Nina Mello: Acho que são maneiras diferenciadas. Um espaço expositivo em que você vai fazer uma exposição é uma conversa e o livro outra conversa. Existem perdas e ganhos. Isso foi o que começou a me chamar a atenção, pois era um outro lugar, um outro espaço em que tenho que pensar de forma diferente. O livro também é um espaço, só que de outra dimensão, então você adequa. Você ganha pensando no design gráfico daquilo, na oportunidade que você tem de textos, narrativas... É uma questão de saber relativizar.
Estou vivendo esse momento do livro que é complexo.Pensar no fotolivro enquanto objeto, com todas essas questões,demanda pensar muitas coisas. Estou feliz e muito ansiosa, pois é uma experiência nova. No meu percurso de vida comecei a perceber que não fico no mesmo lugar por muito tempo, necessito sempre de novas motivações.
Há outro projeto que também estou desenvolvendochamado "Retrato de família", nele peço as pessoas para construírem seus retratos de família a partir de objetos. Já fotografei sete famílias. É um trabalho muito rico que utilizo como uma das referências o pesquisador Armando Silva.
Daniela Aragão: E você também fez algumas curadorias?
Nina Mello: No "Espaço Experimental" pude também começar a transitar um pouco ao redor disso. No espaço produzi exposições. Você começa a enxergar o quanto aquilo ali fala também. Existe o espaço, o ambiente, a leitura que você faz e as conexões que são construídas.
José Alberto Pinho Neves, pró-reitor de cultura da UFJF na época, me convidou para fazer uma exposição no saguão da Pró-Música com uma temática que fosse de minha escolha. Convidei jovens fotógrafos para participarem da exposição, que levou o nome de Vida cotidiana, título homônimo da canção de Jorge Mautner. Os fotógrafos escolheriam uma frase de uma música qualquer e dali partiriam. Esta foi a minha primeira curadoria.
Fiz depois a convite do fotógrafo Humberto Nicoline a curadoria de suaexposição "Olhares Imersos". Era um desafio, minha responsabilidade era grande, pois não tinha na ocasião vasta experiência em curadoria. Entendo essa atividade como uma maneira de olhar o trabalhoachando uma linha para se comunicar. Você irá construir um diálogo com tríade artista-obra-espectador.
Foram meses de trabalho, imprimimos tudo, pois ele também é analógico. Era um material muito rico, com vários temas e cada um com a sua especificidade. A sorte foi que tínhamos um espaço muito amplo no MAMM.
Daniela Aragão:Achei a exposição belíssima. Como vocês expuseram também os registros originais, ficou claro como foi feito um trabalho de recriação. Vocês optaram por usar o preto e branco que ainda a meu ver deu uma dimensão ainda mais artística as fotos.
Nina Mello: A opção pelo preto e branco foi escolha do Humberto. Há os fotogramas originais expostos naquela mesa de luz. Como estávamos falando de processo fotográfico, achei imprescindível a mostragem dos originais. Ali também há uma conversa com o híbrido na perspectiva do cruzamento entre o analógico e o digital. São negativos escaneados e impressos no processo digital.
Daniela Aragão:Acho que esse re-olhar ganhou ainda mais em qualidade artística. A imagem de uma onda no mar gigante explodindo é fantástica.
Nina Mello: Ali é um registro que segundo o Humberto não contempla fotos jornalísticas. Mas vejo que o fotojornalismo esteve muito presente ali. A maior parte dos trabalhos foi realizada de certa maneira no meio do caminho, quando o Humberto saía algum tempo antes de fazer a pauta determinada para olhar outros espaços e ver a cidade.
Daniela Aragão:Para flanar. Em seu percurso como fotógrafa há os artistas que mais te inspiraram entre fotógrafos, artistas plásticos ou outras categorias criativas?
Nina Mello: Acho que é um universo muito grande. Quando comecei a fotografar a referência que eu tinha era dos fotógrafos modernos, o preto e branco, o rigor técnico. Cartier-Bresson German Lorca, Thomas Faras, Geraldo de Barros, Man Ray, Diane Arbus e tantos outros.
Tem o Man Ray, que pensou a fotografia em fotogramas, ele problematiza uma subversão da fotografia, que é algo que me suscita o tempo inteiro.
A fotógrafa americana Nan Goldé uma grande referência pela honestidade de seu trabalho dentro da fotografia íntima, um tema muito atual na fotografia contemporânea. Ela alia o apuro de seu talento estético com um olhar verdadeiro e espontâneo para situações cotidianas. Nan Gold coloca em evidência o universo das minorias.
Daniela Aragão: como você disse no início de nossa entrevista, a fotografia acabou vindo ao acaso e se tornou um ofício seu permeado de envolvimento, entrega e encantamento. Contudo seu referencial imaginário que veio construído desde a infância parece trazer inclinações para a arte.
Nina Mello: Nunca pensei em ser artista. Comecei a trabalhar, pois precisava de um ofício. Antes disso fiz ballet, ele me trouxe Isadora Duncan, que elaborou uma desconstrução muito grande do corpo na dança. Depois no colégio Academia fiz teatro e tomei conhecimento de Brecht, Stanislaw. Depois veio o cinema russo, francês, Truffaut. Eu tinha um imenso encantamento ao ver os filmes em preto e branco, os contrastes. Além disso as leituras me formaram também. Acho que as referências e influências que sofremos são resultantes de um universo muito vasto de leituras, de músicas...
Daniela Aragão: Sem querer tender para questão de gênero, visto que anda cada vez mais complicado tocar nesse aspecto hoje em dia com uma pluralidade "indefinida" de formas. Não podemos ignorar que você é uma mulher com o seu olhar "feminino" sobre as flores.
Nina Mello: Me questiono sobre isso. Será? Claro que sabemos que o mercado privilegia mais o masculino em detrimento do feminino. Será que hoje um homem não faria, não teria o mesmo olhar? Vejo tantos olhares sensíveis masculinos, tem hora que essa questão de gênero me incomoda. Sou uma mulher, vivo dentro de uma sociedade machista. Para a mulher conseguir um resultado reconhecido tem que fazer dez vezes mais que o homem. Como que é isso? Homem, mulher, feminino, masculino, será mesmo que há uma definição tão acentuada assim? Será que a vida é definida pelo gênero?
Eu tenho uma ambiguidade muito grande, sexual, para a vida. As pessoas falam que meu olhar é feminino. Será?
Daniela Aragão:Essa delimitação acaba soando piegas, redutora, lugar comum.
Nina Mello: É também o feminino, mas não só isso.
Daniela Aragão: E esses estudos de gênero estão sendo atualmente tão questionados e derrubados com as novas sexualidades que vem surgindo. Agora tem o tal do "queer"..
Nina Mello: Exatamente. Acho que há algo muito maior que isso. Não acho que seja somente o feminino por eu ser mulher, tem também uma questão masculina. Acho que reduz se pensarmos só na marca feminina.
Daniela Aragão: Alguma frase que sintetizaria a existência da imagem ou da fotografia em sua vida.
Nina Mello: É a dúvida, a ambiguidade, o mistério, o não visto, o que está por trás. Quando falei que a fotografia vem se apresentando, ou seja, hoje a gente constrói verdades, ou realidades. Pensar a fotografia é pensar em possibilidades, verdades, não pensar a rigidez. Enfim, acho que a fotografia é uma grande dúvida. A imagem é uma grande dúvida.
Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.