Entrevista com o compositor e cantor Carlos Fernando

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Entrevista com o compositor e cantor Carlos Fernando
Daniela Aragão 28/05/2015

Entrevista com o compositor e cantor Carlos Fernando

Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?

Carlos Fernando: Começou como ouvinte com meu pai que era fã de Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Elis Regina. Iniciei essa história com a música ouvindo junto com ele. Teve uma época, por volta dos meus treze, quatorze anos em que meu pai costumava escutar sempre o mesmo disco de Milton ou de Elis. O de Milton era um branco ao vivo em que ele canta "Cuitelinho".

Quando papai chegava em casa do trabalho tinha sempre que tomar o último uísque ouvindo algum desses discos. Eu ficava deitado ao seu lado na sala aguardando ele desligar o som para também ir dormir. Acabei decorando esse disco do Milton de tanto ouvir e quando ele dava uma cochilada eu tirava o disco e ele subitamente acordava e colocava novamente (risos). Voltava logo para a faixa um. Eu escutava rádio AM antes das FMS terem esse poder todo, e tudo isso no Rio de Janeiro onde eu morava.
Teve também o acontecimento do samba de carnaval, que sempre foi algo muito forte lá em casa. Meus pais compravam todo ano os Lps de samba enredo e ouviam a partir de dezembro até acabar o carnaval. Um tempo mais adiante, quando eu estava com uns oito anos, fui estudar no colégio Santa Edwiges, em Jacarepaguá. Comecei a tocar flauta doce numa banda da escola, tocava uns dobrados. Acho que a banda me deu a vivacidade para a música.

Daniela Aragão: Tocando na banda da escola você então começou a mudar de posição diante da música, ou seja, de simplesmente ouvinte passou a executar um instrumento então?

Carlos Fernando: Exatamente, toquei na banda por um bom tempo e passei da flauta doce para a corneta, que era o grande sonho dos meninos na época. Na pré-adolescência a corneta funcionava como um símbolo de masculinidade, quem tocava esse instrumento era capaz de conseguir a garota mais bonita. Passei a tocar Tarol também, e assim fui passando pelos instrumentos. Então essa entrada na banda foi muito importante para mim como uma iniciação musical, pois lidei com muito ritmo, os dobrados militares muito marcados na própria pulsação do samba. Acho que isso ajudou a compor certo gosto por um tipo de som.

Daniela Aragão: E a participação efetiva na música que foi se dando inicialmente em seu percurso musical pela experiência com uma diversidade de instrumentos foi prosseguindo após os tempos de infância?

Carlos Fernando: Na adolescência acompanhei todo o movimento do rock nacional, eu ia a muitos shows no Rio. Circo Voador, Circo Tiane, festivais, tinha me transformado em um roqueiro e nem me lembrava mais que existiam Milton Nascimento, Elis Regina e tal. Curtia Led Zeppelin apaixonadamente, tenho todos os vinis até hoje, DVDs e CDs. Até hoje saio comprando as coisas que saem do Led, é a minha paixão do ponto de vista do rock.

Cantava imitando o Robert Plant, fazendo aqueles falsetes dele. Eu era cabeludo. Quando entrei para a UERJ em 1989 para fazer Educação Física .conheci um núcleo de folclore e cultura popular na universidade e comecei a participar. Comecei a fazer samba, maracatu, frevo e fui me apaixonando por isso.

Daniela Aragão: Então sua entrada na Universidade para cursar Educação Física o reaproximou da riqueza rítmica e de caráter mais nacional, que você havia tomado certo contato inicialmente na escola.

Carlos Fernando: Nessa época meu pai era portelense doente e minha mãe mangueirense mais doente ainda, acabei me tornando Império Serrano para não causar briga com nenhum dos dois. Era a terceira força da época. Mangueira, Portela e Império. Em 84 assisti a um desfile da Vila Isabel pela televisão que muito me tocou. O enredo falava sobre os trabalhadores do carnaval, chamava-se "Para tudo se acabar na quarta feira". Me lembro de que o samba era de Martinho da Villa e ele vinha num carro alegórico representando Tom Jobim. Imagina um negro fazendo o Tom.

Me encontrei definitivamente com Vila Isabel na UERJ, quando fui trabalhar com um projeto de extensão e lazer no Morro do Terreirinho. Dei oficinas esportivas para crianças e adolescentes do bairro. Comecei a frequentar a comunidade, não só da Vila, mas também do Salgueiro, Unidos da Tijuca. Cheguei a conclusão de que deveria desfilar, isso aconteceu a partir da vivência comunitária que fui adquirindo e por minha paixão e envolvimento com o carnaval. Meu primeiro desfile foi --- da Rainha, uma escola de segundo grupo, no mesmo ano também desfilei na Villa.

Daniela Aragão: Quando você começou a sentir essa verve do compositor? Primeiro você foi tomando contato com uma variedade de instrumentos rítmicos e encontrando afinidade?

Carlos Fernando: Na época do rock nacional arriscava escrever algumas coisas no caderno da escola, mas aqueles versos eu não achava bons e nem tinha um parceiro de melodia para tentar aproveitar alguns. Eu não me via capaz de compor melodia naquele momento. Eu escrevia alguns textos apenas.

A questão do compositor é tardia. Vim morar em Juiz de Fora em 2001, fiz a seleção para canto na escola de música Bituca, em Barbacena e fui estudar com a Babaya. A Bituca me abriu uma espécie de interruptor que estava fechado no meu cérebro e na minha alma e a partir dali foi ligado. Por conta do exercício semanal de cantar e estudar música, comecei a compor de uma hora para outra.

Uma vez no carro voltando da Bituca, de Juiz de Fora para Barbacena na estrada 040, olhei para aquelas montanhas e comecei a fazer uma letra. Era uma história de uma fazenda de café em que um escravo se apaixona pela moça que era a filha do fazendeiro, acabei gravando essa música em 2006 no primeiro disco que fiz. Essa música é uma toada e compus letra e música na hora. As que fui fazendo em seguida começaram a surgir da mesma maneira, letra e música juntos. Nunca toquei nenhum instrumento harmônico, então para mim compor é sempre um achado.

Daniela Aragão: Como é que você faz para compor, usa o gravador?

Carlos Fernando: Eu gravo. O que ficou para mim da época dos primeiros contatos musicais foi a retomada flauta, muita coisa componho com o auxílio da flauta.

Daniela Aragão: Nunca pegou o violão?

Carlos Fernando: Nunca. Minha mão é pequena, meus dedos começam a doer e sempre desisto. Sei que o violão poderia me ajudar muito. Já fiz aula de piano, mas também não foi pra frente. Meu negócio é tambor, toco todos os instrumentos percussivos além de cantar. Passei a compor então nessa lógica. Nesse processo fui me exercitando até passar a fazer também melodias para textos.

Daniela Aragão: Eram poemas e letras?

Carlos Fernando: Não, na verdade eram letras. Nunca peguei um poema para musicar. Alguns começaram a me mandar letras e nada surgia enquanto outros despertavam a vontade de colocar uma música de imediato, como é o caso de meu parceiro Thiago Rattes. Thiago me manda uma letra e imediatamente sou capaz de construir uma melodia.

Daniela Aragão: É afinidade.

Carlos Fernando: Exatamente, afinidade. Temos uma sintonia imensa, parece que ele está sempre adivinhando o que quero colocar em termos de som.

Daniela Aragão: E o processo inverso já aconteceu? Você mandar música e ele colocar a letra?

Carlos Fernando: A música que abre o 040 o "Samba Valente" foi feito da seguinte forma, eu tinha construído uma melodia a partir de uma letra de um amigo que havia me mandado, mas eu não gostava daquela letra. Achava que não tinha a ver e então provoquei uma traição mandando a melodia que tinha feito a partir desta letra para o Thiago. Quando chegou a letra fiquei super satisfeito, pois era o que eu esperava.

Daniela Aragão: Entre parceiros costumam acontecer casos atípicos, como é o caso de "Valsinha" em que Chico Buarque fez a letra e Vinícius de Moraes a música. Esses momentos são únicos.

Carlos Fernando: Thiago não compõe melodia, mas já aconteceu essa dupla função. O "samba Valente" acabou abrindo o disco. Este foi o meu primeiro disco feito lançado em 2011. Ele traz esse nome, pois eu fazia quarenta anos na época, mas principalmente por essa minha relação de trânsito. Sou carioca, morei em |Belo Horizonte fazendo doutorado e vinha para Juiz de Fora trabalhar. Eu passava pela 040 toda semana.

Daniela Aragão: É chato ficarmos classificando os artistas, mas poderíamos dizer que você está no gênero samba então?

Carlos Fernando: O que mais marca minha produção e criação é o samba, quando sento para compor vem sambas, ainda que nos últimos tempos eu venha fazendo coisas diferentes que ainda nem gravei ou divulguei. Trago uma influência muito forte do "Clube da Esquina", acho que por conta do Milton e de Elis que não saem de minha cabeça desde a infância.

Daniela Aragão: Suponho que esse encantamento pela obra de Milton Nascimento que você traz como legado da infância nas audições com seu pai, foi intensificado em seu estudo na Bituca, que por si só é uma escola de música popular brasileira que traz como um dos fundadores Milton Nascimento, o Bituca. Na Bituca privilegia-se o repertório mineiro.

Carlos Fernando: Com certeza Daniela, a Bituca me aproximou muito também da música mineira. Nos 40 anos do disco "Clube da Esquina reunimos uma turma da Bituca e fizemos dois shows em Juiz de Fora, um no Cultural e outro no Pró-Música. Foi um projeto maravilhoso e que desejo gravar algo para frente. Adoraria gravar um disco com músicas de Milton Nascimento, faz parte de um daqueles grandes desejos que temos na vida. Ouço muito o "Clube da Esquina", talvez até mais que os sambas.

Daniela Aragão: Quais os compositores que mais te influenciaram? Você passa por Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel?

Carlos Fernando: Quando comecei a curtir esse lance do samba na perspectiva das escolas, comecei também a pesquisar, pois minha vida de músico está atrelada ao ofício de professor. Pesquiso desde muito cedo na minha área de educação física. Sabia que inevitavelmente também iria pesquisar a música.
Comecei a pesquisar os principais compositores do Rio de Janeiro, iniciei por Noel Rosa em função da Vila Isabel. Fui atrás das músicas dele e assim aconteceu com os demais compositores do samba que fui desvelando. Sou um cara que milito no samba tradicional, que é um samba que vem harmonicamente, a letras baseadas nas temáticas elaboradas por esses compositores que estão aí até hoje. A minha grande referência no samba e vivência com a escola é o Martinho da Vila, ele é a meu ver um dos principais compositores de samba vivo em virtude da perenidade que há na carreira dele. Martinho começou sua carreira em 67 e até hoje continua vendendo discos e possui uma obra fantástica.

Daniela Aragão: E Paulinho da Viola?

Carlos Fernando: Também gosto muito de Paulinho. Cartola, Paulinho, Martinho, Noel Rosa, Paulo César Pinheiro, João Nogueira são gênios. Necessariamente temos que passar por eles e carregá-los conosco para a vida inteira.

Daniela Aragão: E o seu novo Cd Baoba?

Carlos Fernando: Analisando o "Baoba" que está pronto para ser lançado e o anterior ao "zeroqurenta confesso que o . Para o Baoba eu quis sair um pouco da parte mineira do "Zeroqurenta" e voltar para o Rio de Janeiro e fazer um disco essencialmente carioca, embora as críticas que eu tenha recebido dele me digam o contrario. Fiz o "baoba" todo no Rio, com músicos do Rio. Gravei no estúdio do Rio, mixei no Rio. Tenho dois convidados do Rio, Ana Costa que já participou do Zeroquarenta e Wilson das Neves. Regravei um samba de Martinho da Vila de 76 pouco conhecido e chamei a Ana para gravar comigo.

Daniela Aragão: Você tem em seu disco Wilson das Neves, um convidado de honra. Foi fácil chegar até ele?

Carlos Fernando: Fiz um samba em parceria com Thiago Rattes pensando no Wilson das Neves cantando. Um dia comentando com o produtor do disco que foi o Luiz Felipe de Lima, amigo do Wilson das Neves ( eu não sabia dessa relação dos dois). Ele ligou para o Wilson que topou gravar, claro que não foi de uma hora para outra, levou aquele tempo. Um belo dia Luiz Felipe me liga e diz que ele iria gravar e que só queria uma coisa, daí imaginei o super cachê e tal, não era nada disso, apenas um transporte. Fui lá na casa do Wilson lá na Ilha do Governador, o que rendeu um longo papo até o estúdio na Barra.

Daniela Aragão: E o Wilson já estava com a música toda na cabeça?

Carlos Fernando: Nada disso. Foi ouvindo o samba comigo no carro. Chegou lá, gravou e fiquei alucinado. Até hoje ao ouvir me emociono. Acho que os orixás trabalham ao meu favor, pois dei muita sorte com a realização desse sonho que foi a participação do Wilson das Neves numa faixa.

O "Baoba" é um disco de sambas meus com parceiros de Juiz de Fora, "Cavaco madeira" é um samba de músicos daqui da cidade que ficou conhecido. Este samba é de Roger Rezende, Kadu Mauad e Dudu Costa e de Edinho Leão. Tem um samba de Ricardo Barroso que ele compôs em homenagem a Noel Rosa. Eu estava querendo gravar "Último desejo" de Noel por conta da minha relação com a Vila e também por achá-lo um compositor fantástico. Dou um curso de quatro aulas sobre Noel no curso de música aqui da universidade. Comecei a ouvir várias regravações de "Último desejo".

Daniela Aragão: A obra de Noel Rosa já caiu em domínio público?

Carlos Fernando: As dele sozinho apenas, as em parceria com Vadico ainda não. Acabei optando por gravar o samba de Ricardo Barroso em homenagem a Noel que adorei. São onze faixas no total. Na primeira semana de abril deve chegar.

Daniela Aragão: E o lançamento já está marcado?

Carlos Fernando: Sim, para o dia 31 de maio na Bernardo Mascarenhas. No Rio a princípio estamos agendados para 24 de junho.

Daniela Aragão: Me chamou atenção o fato de você ter toda uma formação acadêmica em Educação Física e também dar aula sobre música popular brasileira.

Carlos Fernando: Na verdade sempre trabalhei com história, não sou historiador, mas desde cedo comecei a estudar a história da educação física e do esporte. Meus trabalhos de mestrado, doutorado e pós-doutorado foram todos direcionados para a história do esporte. Na Educação Física trabalho com a história do esporte e no curso de música trabalho com história da MPB. Isso me levou muito a pesquisar a história do samba e da música em geral. Tenho tentado cada vez mais me aproximar desses objetos unindo as pontas, como pesquisador, professor e músico.

Daniela Aragão: Com muita competência e seriedade. O que representa a música em sua vida?

Carlos Fernando: Noel fala por mim "Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio/ Sambar é chorar de alegria/ É sorrir de nostalgia Dentro da melodia".


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.