Entrevista com o poeta e professor Andr? Monteiro

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Entrevista com o poeta e professor Andr? Monteiro
Daniela Aragão 12/08/2015

Entrevista com o poeta e professor André Monteiro

Daniela Aragão: Como começou sua relação com a palavra?

André Monteiro: Quando criança e adolescente eu não tinha nenhuma pretensão em trabalhar com a palavra, até os quinze anos pensava em ser pintor, talvez músico. Minha saída na adolescência era muito pelas drogas e pelo rock, a ideia de escrever era uma coisa muito sisuda. A imagem que eu tinha da literatura era muito ligada a professora de português, que era péssima por sinal. Uma imagem de anti-vida, muita seriedade confundida com sisudez, como diz Oswald de Andrade.

Até que descobri Torquato Neto, a segunda edição de “Os últimos dias de paupéria”, eu tinha por volta de quinze anos. A partir dele comecei a perceber que a poesia poderia ser algo com uma pulsão vital, que até então eu só encontrava no rock and roll. Torquato me trouxe essa outra maneira de enxergar a palavra escrita. Os textos dele são muito viscerais, possuem uma corporeidade muito forte, gritam. Tinha também a ideia de ocupar, espaços, uma poesia de guerra contra todos os fascismos. Uma literatura forte, que hoje entendo fazer falar a vida. A ideia de que a palavra poderia ser trabalhada com intensidade, sem pompa e sisudez, essa descoberta Torquato me trouxe.

Daniela Aragão: Torquato foi sua porta de abertura para a literatura que viria por meio dele com uma vastidão de referências.

André Monteiro: Exatamente. Fui descobrindo outras referências, o concretismo, o cinema marginal, Sganzerla, Bressane. Passei pelo Oswald de Andrade, descobri o Tropicalismo, fui montando essas referências. A poesia dos anos 70, ou seja, a poesia marginal caía um pouco nesse universo. Fui vendo que dava para escrever de uma forma lúdica, que poderia se escrever como se estivesse brincando, jogando bola, ou tocando guitarra. A partir de então entendi que a palavra poderia ser algo libertador e não opressivo.

Daniela Aragão: Seus primeiros escritos se iniciam nessa fase?

André Monteiro: Comecei a brincar com as palavras, muita coisa está no livrinho “Ócios do ócio”, que reúne meus escritos dos dezesseis aos vinte e dois anos, embora ele seja de 2000. Ele traz poemas marcados pela influência da poesia dos anos setenta, a poesia minuto, a poesia relâmpago. Flashes do cotidiano. Poesia feita com palavras que estão na oralidade. A poesia como ócio e não como trabalho, como algo que libera o corpo e não o obriga a um tipo de trabalho a priori. Incluí estes poemas na reunião que lancei recentemente “Cheguei atrasado ao campeonato de suicídio”.

Daniela Aragão: Sua dissertação de mestrado acabou sendo sobre o Torquato.

André Monteiro: É uma dissertação que acho péssima. Ela ganhou um prêmio da Xerox, mas hoje a rejeito por duas razões. O livro saiu em 1999 e logo após a publicação comecei a repensar esse texto e até hoje não o aceito, é um filho que renego.

Primeiro pela forma sisuda o qual foi escrito, uma forma muito obediente a academia, aquela maneira realista, padrão. Este livro está muito preso a etiqueta do formato acadêmico, as ideias claras, a transparência. O explicar tudo, o ser linear, não ousa fazer digressões, ou seja, “pegar o voo da bruxa”, como diria Deleuze e Guatarri. Não tem linha de fuga. Tem um corpo duro que quer se enquadrar a tendência realista da pesquisa acadêmica, que pressupõe uma lógica com princípio, meio e fim. É uma escrita medrosa, pois a academia nos coloca muito medo. Eu obedeci a ficção científica. Não é um texto que deixa a vida entrar. Não trabalhei com as linhas de fuga, foi um texto obediente.

Daniela Aragão: No momento da escrita você já se sentia tolhido?

André Monteiro: Sentia, mas eu não me dava conta de que estava sendo tão oprimido no momento em que escrevia. Achava que estava fazendo a coisa certa, eu estava moralizado pela estética acadêmica.

Nietzsche nas metamorfoses do Zaratrusta, o camelo, o leão e a criança. O camelo é o que carrega o peso da cultura, é o animal de carga. É o que diz sim ao não de toda cultura, é o animal que carrega. O leão diz não, é a contracultura, diz que não vai carregar, vai avançar sobre a cultura. A criança é a metamorfose mais bonita, pois não é o camelo que diz sim ao não, não é o leão que diz não ao não, mas já é a que diz sim ao sim. A criança esquece a cultura mesma para criar uma outra cultura. Nessa época eu estava totalmente camelo e sem pensar com Nietzsche ainda.

É um livro de muitas paráfrases, de tentar colocar o Torquato dentro de determinadas molduras e enunciados. É um livro que não tem uma enunciação, não tem uma assinatura do meu corpo.

Não gosto também do livro em razão da ideia. Torquato era o meu guru e eu nutria um encantamento romântico. Tinha a questão da marginalidade, sendo o Torquato aquele que resistiu e pagou com a vida um pouco e não traiu sua poesia. Tinha essa ideia do Torquato como vítima, um certo fascismo político e cultural. O personagem que não se enquadrou, ao contrário dos demais tropicalistas. Torquato foi aquele que se manteve como o anjo torto.

Daniela Aragão: Seria uma espécie de idolatria por Torquato ?

André Monteiro: Exatamente, eu tinha idolatria por esse lugar da margem, eu queria ser esse marginal. Quando fiz a dissertação vi isso ao contrário, pois toda margem está no centro e todo centro está na margem. Tudo vira mercadoria, circula, faz vender livro. Então esse signo do romantismo não pode ser colocado num lugar absolutamente marginal.

Daniela Aragão: A partir daí você começou a desmistificar o Torquato?

André Monteiro: Não somente o Torquato, mas todos os marginais. Essa tradição romântica moderna do poeta maldito que se coloca do lado de fora do sistema. O meu livro tenta desmistificar toda essa ideia do poeta maldito, que não passa de uma mercadoria como qualquer outra. Com isso eu anulei a potência do Torquato, mas não dei a contravolta.

Fiquei no contra mito, mas não disse o que era potente nesse mito. Por este motivo principalmente não gosto deste meu livro. A postura que tomei de ateísmo em relação aos marginais, diluí o marginal no centro. É saudável você dizer que a margem não é pura, mas o interessante é falar como isso entra dentro do centro. O que faz com que o mercado seja um outro mercado.

Daniela Aragão: Você pensa em retomar a escrita sobre Torquato agora sob seu novo viés?

André Monteiro: Há a imagem do Torquato como suicida, uma imagem sombria, mas há uma outra que quero resgatar que é a ideia de Torquato como alguém que resiste com vida, não com morte. Todo aquele lema dele de ocupar os espaços pelas brechas, entrar nos ambientes que são duros, opressivos e tentar fazer furos. Ele dizia “toda realidade tem brechas, procure por elas, invente o seu espaço”. Acho que esta foi a grande bandeira que Torquato nos legou, não só no legado dito artístico. Como tentar respirar num mundo que tenta nos sufocar o tempo inteiro, pois há opressão para todos os lados. O mundo nos comunica afetos tristes, como diz Deleuze. Falar de Torquato somente como suicida é reiterar o afeto triste, o lugar da vítima.

Daniela Aragão: Ter ampliado e revisado seu olhar sobre o Torquato implicou em alguma modificação em sua escrita criativa, nos poemas por exemplo?

André Monteiro: Até a escrita desta dissertação eu achava que escrever poesia era uma coisa e a vida acadêmica outra. A maioria dos poetas que estão na academia muitas vezes separam o mundo poético do mundo acadêmico de uma forma muito feia. Eles ficam lamentando o fato de serem professores e não somente poetas, que dão aula somente para ganhar dinheiro. Existe esta fala.

Daniela Aragão: Como se o único meio de sobrevivência para o poeta na contemporaneidade fosse a universidade e há uma espécie de queixa, insatisfação.

André Monteiro: Está por trás disso a ideia de que dar aula é uma coisa sisuda, de que não tem poesia. O espaço do pensamento conceitual tem que ser cinza, duro, retomando um texto do Alberto Pucheu “Pelo colorido, além do cinzento”. Ele propõe a ideia de que não tem que ser cinza, a crítica pode ser tão colorida quanto o que chamamos de poesia. A crítica pode também ser feita com poesia, não somente sobre a poesia ou a serviço dela. A ideia de que o espaço da sala de aula é um lugar de representação do conhecimento e não de criação do conhecimento, lamentavelmente.

Daniela Aragão: Persiste essa cisão que vem desde a antiguidade. A criação mais ligada aos aspectos lúdicos em oposição a teoria arraigada a ideia de poder e sisudez.

André Monteiro: Exatamente, de um lado o poeta filósofo que trabalha com conceitos e de outro o poeta criador, que trabalha com o corpo, o pathos, tudo aquilo que é delirante, dionisíaco. Acho possível quebrar essa cisão, pois para mim dar aula é tão poético quanto qualquer outra coisa.

Penso que há duas maneiras de dar aula, a alterofilista e a surfista. O alterofilista é aquele que planeja um curso e já supõe um fim e ele pretenderá fazer tudo para que alcance aquele fim proposto. Assim todo o meio para dar aula serve para este fim já previsto. Ele trabalha com o possível, vai levantar o peso ou não. O final já está posto de antemão.

Já o surfista trabalha com o processo, pois ele não pode nunca saber o desenho da próxima onda, a velocidade. Ele tem que se preparar para o impossível, lembrando um poeminha de Chacal: “ Só o impossível acontece e o possível apenas se repete, se repete, se repete”. Só o impossível acontece, ele habita essa dobra da onda. Acho que um professor pode se dar ao luxo de ser surfista. É mais vivo pensar uma metodologia como surfista que como alterofilista, embora essa segunda forma seja predominante.

Daniela Aragão: Estamos todos reféns de um sistema de imposição produtivista.

André Monteiro: Fomos educados para dar certo. O que os institutos de pesquisa demandam? Que os resultados esperados sejam alcançados. Uma pesquisa tem que dar errado, pois se ela der certo não é uma pesquisa. Se os resultados esperados coincidirem com os resultados finais, isso não foi pesquisa de nada. Você não saiu do lugar. É esse tipo de metodologia que chamo de alterofilista que os institutos querem fazer valer.

Daniela Aragão: E o espaço Universidade propriamente dito?

André Monteiro: Hoje mais do que nunca a universidade está quase que totalmente operacionalizada. Nos anos setenta a universidade servia para o mercado, para os grandes projetos da ditadura, então era formar engenheiro, esse pessoal. Ou para dar status para uma certa classe média, pois era totalmente elitizada. Isso dura até os anos oitenta. Nos anos noventa ela vai se transformar em algo totalmente neoliberal, na política do PSDB. Uma universidade para dar certo se alia com o mercado e para ela ser útil ao mercado se alia a toda aquela febre das pequenas empresas, empresas Junior. É a lógica do resultado.

De uns dez anos para cá a universidade se tornou o mercado, ela incorporou a psicologia do mercado. Não é mais só parceira, isso está numa competição total que se diz um padrão de qualidade. Um programa de pós-graduação competindo com o outro para poder lutar pela nota 5, 6 da Capes. Você competindo com o seu colega para ver se o seu lattes é melhor que o do outro. Não se tem mais reunião de departamento para se discutir pensamento, o que se discute é como vamos avançar para termos um resultado melhor, operarmos dentro desta psicologia que é o mercado totalmente internalizado dentro dos corpos da academia.

Daniela Aragão: Nesse sistema produtivista como você vê a produção textual dos alunos?

André Monteiro: O texto dos alunos é duro, pois tem que cumprir uma estética que já está posta aprioristicamente. Estamos funcionando nessa lógica do resultado. Na verdade isso faz parte do fascismo contemporâneo. Pasolini falou isso na década de setenta e Foucault também.

O mundo ocidental parou de operar no fascismo clássico, que era aquele que te censurava, que te proibia de dizer. Mas se sabia aonde estava o ditador, o muro. O fascismo da sociedade de controle é muito mais sutil, pois não te proíbe de fazer nada. Se você tiver dinheiro para consumir você muda de corpo como se estivesse mudando de roupa. Você pode ser flexível, desde que tudo compre.

Só que na verdade não se pode nada. O indivíduo compra e se transforma de acordo com a órbita do mercado. Ele é todo o tempo seduzido pelos modelos identitários que o mercado fabrica. Há uma hipnose mercadológica que é moralizadora. Muda-se de acordo com modelos, na verdade troca-se de modelos.

Lutamos para ficar iguais, então os modelos das universidades são estes. Toda uma competitividade em função de um fim que é a homogeneidade total.

Daniela Aragão: Ou seja, a universidade não está fora desse “fascismo”, assim como o livro.

André Monteiro: Exatamente. Todo mundo tem que ler um determinado autor. Todos ficam parafraseando os mesmos autores. Isso tem uma relação com a editora, o mercado, o jornalismo dito ensaístico, literário, filosófico etc. Não tem como a academia se dissociar do mercado e o grande desafio dela hoje talvez seja chegar atrasada.

A universidade não pode ser pensada pela sociedade, pois assim ela reproduz o que está posto. A função da universidade é criar pensamento. É criar problema para a sociedade. O mercado já faz o papel da reprodução. Se a universidade não conseguir ser uma resistência à lógica da mercadoria ela não faz sentido algum ao mundo.

Daniela Aragão: Nesse contexto você se considera um pessimista ou otimista?

André Monteiro: Sou um otimista e pessimista, porque nunca vivemos numa sociedade tão fascista. O mundo do século dezenove era menos controlador que o mundo em que vivemos hoje. Aconteceu uma coisa muito estranha na segunda metade do século vinte para cá no mundo ocidental, houve uma explosão dos modelos todos, pois a contracultura trouxe isso. Então todo o corpo fordista do trabalho foi colocado em questão. O corpo rebolou, Elvis Presley foi para a televisão e foi um escândalo, depois David Bowie, Ney Matogrosso no Brasil. Isso trouxe uma possibilidade de quebrar com tudo o que era duro e oprimia o corpo. Mas todas essas quebras foram incorporadas pelo mercado.

Se antes era proibido rebolar, hoje a gente se obriga a rebolar. O rebolar vai dar na Xuxa, no Tcham. Nesses lugares de moralização do corpo, não é deixar o corpo acontecer. É a obrigação de ter que mostrar o corpo.

Sou pessimista porque vivemos numa sociedade fascista, mas sou otimista pois não há nenhum lugar totalmente fechado no mundo. Todo o lugar que se constrói no mundo sempre tem um fora. Não acredito que nenhum lugar seja totalmente imune aos insetos que estão ali fora. Não precisa abrir a janela para que os insetos entrem, como diz Caetano, eles vão entrar de alguma forma. Há sempre uma força centrífuga querendo sair.

Daniela Aragão: A “salvação” seria então uma saída pelas brechas?

André Monteiro: Eu estava lendo um livro de Hulbermam “A sobrevivência dos vagalumes”, que reflete sobre a ideia de vagalume no Pasolini, que é muito bonita. Pasolini achava que o vagalume era exatamente essa brecha, dentro do breu fascista (fascismo de estado, de exceção) que é escuro sempre. O vagalume não é a luz total, mas um signo de resistência intermitente.

O fascismo da atualidade não é o da escuridão, mas sim o da claridade absoluta, dos holofotes da televisão. Todo mundo está perseguido por esses holofotes e quer entrar, daí não há como o vagalume existir. A luz dele não aparece justamente pelo excesso de luz. Em todo lugar você está sendo vigiado, filmado. Você tem que sorrir o tempo inteiro. O vagalume se perdeu nisso, a sua intermitência não aparece nas luzes desse segundo fascismo, desse outro fascismo que é a sociedade de consumo. Mas se estamos aqui, temos que estar atentos para novas possibilidades de vida que não estão contempladas, de alguma forma algum canto que possa fazer valer os vagalumes.

Daniela Aragão: O que é a literatura para sua vida?

André Monteiro: Acho que não sei dizer. Mas se soubesse, diria assim: tem a ver com o incômodo, com aquilo que, para além do bem e do mal, me fere e me abre pra vida. Tem a ver com grandeza indizível dos acontecimentos. Mas não é nada de outro mundo. É coisa cotidiana quando assume grandeza, quando se torna insuportável, ou seja, quando não encontra suporte nos códigos que estão em oferta no fascismo dos dias. A literatura não é a palavra. A literatura é grande e não tem cabimento. Não cabe em nenhum código. É a própria vida, em sua dimensão elétrica, plena de intensidade. Mas a literatura precisa da palavra. É através dela que se pode dizer o que não se pode dizer. Escrever, pra mim, é isso, esse paradoxo: sair por aí procurando palavras para suportar a grandeza de tudo que me é insuportável.