Feliniando II
Feliniando II
Sendo sincera, na adolescência eu e minhas colegas transgredíamos o pacto de fidelidade que em geral se trava na escrita de um diário, ou seja, prometemos por medo, vaidade, tradição, fetiche ou qualquer outro motivo, guardarmos nossos maiores segredos somente entre nós e o papel. Meninas sapecas e plenas de segredos partilháveis, feríamos todo o glamour da escrita inconfessável ao dividirmos com total inocência e despudor nossos segredos que julgávamos descobertas sublimes. Nosso deleite maior consistia em colarmos palitos de picolés, embalagens de bombons (sonho de valsa roxo), caixinhas de chicletes Adams e tudo o mais que eternizasse em nossos frágeis e afoitos corações as primeiras epifanias no vasto, inquietante e perturbador universo do amor. Numa das páginas eu colava com cola Cascola a caixinha de chicletes Adams, presenteada por um menino o qual tinha dado não mais que três longos beijos demorados. Esse "imenso", inusitado e caloroso acontecimento rendia páginas de impressões escritas, perfumadas pelo odor de menta conservado pela caixinha.
Batizei meu diário teresinense de Sol, palavra que considero bela por
O maestro soberano Antônio Carlos Jobim era um apaixonado entendedor de pássaros em sua diversidade de espécies. Um de seus mais lindos discos chama-se simplesmente "Urubu" e traz em destaque na capa a foto de um urubu voando sobre um espaço pleno de azul. E os urubus passeiam entre os girassóis, já dizia Caetano.
Por onde anda Florbela? Essa pergunta cansei de me fazer e de responder aos poucos que a conheceram e sentem saudade. A linda gatinha tricolor que resgatei e trouxe para minha casa com desejo imenso de criá-la, com todas as minhas reservas de amor e carinho, permaneceu comigo por pouco tempo. Numa curta viagem de uma semana, deixei-a sob os cuidados (remunerados) de uma vizinha, que me ofereceu todos os seus préstimos com garantia de carinho, cuidado e responsabilidade. Quando retornei numa noite de domingo e abri rapidamente a porta de minha casa eufórica de saudade da bichinha, não a encontrei.
Chamei por Florbela vasculhando todos os cantos de meu pequeno apartamento, decidi ir até a entrada dos outros prédios vizinhos que compõem o condomínio, até chegar a calçada externa do grande portão de entrada. Nada, nada, nada de Florbela.
No dia seguinte, a "cuidadora" sem a menor expressão de pudor ou arrependimento, disse friamente que por descuido deixou a porta aberta enquanto renovava a ração de Florbela na vasilha. Argumentou não ter pressentido sua fuga. História para lá de mal contada e que me fez insistentemente procurar durante semanas por minha querida felina embaixo dos carros, nos canteiros do condomínio, próximo as lixeiras, entre as árvores ... até que o desânimo e aperto no coração se tornaram maiores que minha forte insistência.
Levei a barrigudinha para casa, banhei-a e dirigi-me no dia seguinte ao veterinário do bairro, para me certificar se a gatinha carregava outras vidas em seu ventre, ou se padecia de verme e desnutrição. Na chegada a minha casa ela devorou sem quase fazer interrupções três cheias vazilhas de ração e um pote de louça cheio de água. Já devidamente nomeada, Capitú seria mamãe pela primeira vez, dado o adiantado da hora. Uma púbere que não ultrapassava cinco meses e meio deve ter caído nos cortejos sedutores dos vários gatos que circulam na área. Disseram-me que o suposto pai seria o gato "chorão", um lindo felino inteiramente caramelado e viril que comanda a área de meu condomínio. É uma espécie de Gato de Botas, que deixa as felinas todas serelepes.
Gatos são surpreendentes, misteriosos e sedutores. Justamente na noite em que não dormi em casa e retornei pela manhã, demorei a encontrar Capitú. Fui me guiando por uns miados finos que me levaram até embaixo da cama, lá estava ela com seu três filhos ainda envoltos pelo sangue da vida, que ela cuidadosamente e com sua total sabedoria instintiva ia limpando. Capitú olhou para mim com intensa cumplicidade, lambeu meu dedo indicador e comungamos juntas o presente da vida.
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.