Caymmi p?e a baiana pra rodar
Caymmi põe a baiana pra rodar
sandálias de plástico vermelhas, que deixavam em evidência seus dedinhos dos pés também pintados de vermelho.
A infância se fez presente: nas janelas do apartamento em que morava minha tia Ruth, na Avenida Rio Branco, em Juiz de Fora, eu e minha prima, Aninha, disputávamos a melhor vista do carnaval. Tentávamos captar do alto do sétimo andar a energia proporcionada pelo "tumulto" da concentração, que se instalava logo ali embaixo. Bateria, carros alegóricos, transeuntes bêbados e fantasiados, barraquinhas de vendedores ambulantes e todas as diversidades possíveis. Como eu era três anos mais nova do que a Aninha e, consideravelmente, mais rechonchuda, ela com sua altivez e esperteza, sempre ocupava o melhor lugar em minha frente. Grudava-se na parede junto à janela esticando seus braços longilíneos como tentáculos, postando-se hábil tal qual uma lagartixa. Aninha loura e de tez alvíssima, era uma espécie de pequena Catherine Deneuve, todavia sonhava em desfilar como uma das mulatas passistas. Eu, simplesmente, ignorava todo o gingar das passistas, devido a minha incompatibilidade com a micro indumentária e falta de sincronia com a desenvoltura dos movimentos daquelas dançarinas incríveis. Minha paixão até hoje, orgulhosamente, confessável são as baianas, com suas enormes e arredondadas anáguas que giram compondo lindos desenhos pela pista.
Nenhum vento havia soprado, ainda, me trazendo a beleza das composições de Geraldo Pereira, meu conterrâneo. "Falsa baiana" só mesmo na interpretação impecável de João Gilberto: "A falsa baiana quando entra no samba/Ninguém se incomoda, ninguém bate palma, ninguém abre a roda, ninguém grita ôba".
Exaustivamente, colocava o disco "Gal Fantasia" para rodar na eletrola naqueles tempos de obsessivo sonho "baianês". Fissurada pelo canto de Gal, tentava acompanhá-la em uníssono, reproduzindo seu timming em cada preciso compasso e divisão. A desafiável voz de diamante cortante de Gal Fatal: "A maré na vazante/Tá querendo enconstar/Tá querendo entregar/Uma estrela brilhante/Caída do mar, ê!/Pelo teu remelexo, ô/Pelo nó nas cadeiras, ah!/Quando põe a baiana pra rodar/ quando põe a baiana pra rodar/ quando põe a baiana pra rodar".
Venho acumulando em meu acervo uma safra de composições de Dorival Caymmi dedicadas às baianas. Até um dia, até talvez, até quem sabe, consiga transformar minhas apreensões Caymianas num pequeno show consagrado a esse criador estupendo. Qualquer coisa que eu tente dizer aqui sobre Caymmi seria chover no molhado. Convém considerar as reflexões tão sábias e profundas da jornalista e neta, Stella Caymmi; do pesquisador e escritor, Francisco Bosco; do seu filho, Danilo Caymmi e do meu amigo e pesquisador musical, Júlio Diniz, entre outros que se debruçaram na decifração da obra de Dorival Caymmi.
Talvez poucos saibam, mas o revirar dos olhinhos acompanhados pelos trejeitos que consagraram Carmem Miranda foram inventados por Dorival Caymmi, que colocou nossa portuguesa, "baiana", pra rodar e encantar os Estados Unidos.
Dentro de mim mora um anjo, muitas baianas e um Caymmi sublime.
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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