O coraçãozinho rosa de Ravel
O coraçãozinho rosa de Ravel
Observo que comem com satisfação até o último grão e utilizam de todo o charme possível para nos convencer de que o café da manhã, o lanche ou o jantar sempre são insuficientes. A turminha aqui de casa já descobriu uma maneira de escalar o espaço, entre a pia e a geladeira, para alcançar o grande pote de ração, que antes se encontrava bem posicionado numa prateleira da cozinha, ao lado da geladeira. Uma madrugada eu acordei com um estrondo e levantei-me para ver um cenário, tipicamente, feliniano: o trio de assaltantes noturnos consumia o grande pote derramado sobre o chão. Claro que, com seus olhos verdes e profundos me fixando com sedução hipnótica, todos eram inocentes.
Ah, os gatos e suas façanhas e mistérios que seduzem pessoas há milênios. Hoje, dedico-me a tentar discorrer um pouco sobre Ravel, que conheço desde o ventre de sua mãe, Capitú. Numa ninhada em que três filhotes nasceram plenamente saudáveis, encantei-me de imediato por um gatinho que era, praticamente, igual à mãe, em seu duo de cores cinza e branco. O que, primeiramente, mais me chamou a atenção foi o formato de seu crânio, um pouco mais quadrado, trazendo a evidência de olhinhos muito puxados compondo uma belíssima harmonia de traços. O focinho era quase inteiramente rosado, mas entrevia-se uma espécie de contorno mais escuro, que com crescimento de Ravel transformou-se num delicado coraçãozinho.
Ravel já é um adolescente, com quase oito meses de vida. Os apelos hormonais e a inquietude o levavam a escalar as cortinas tal qual Tarzan, e subir no alto do varal como equilibrista deslizante entre toalhas e roupas, para formular um golpe de fuga. Levei-o para ser castrado. Embora o processo de castração nos machos seja, aparentemente, mais fácil e rápido, o rapazinho voltou jururu para casa. Confesso que me senti triste e pesarosa ao vê-lo andar pelo chão arrastando as pequenas bolinhas que haviam restado, murchas, pela retirada dos testículos. Macho é macho em qualquer espécie.
Tive receio de que Ravel perdesse seu entusiasmo e suas peraltices, mas esse abusado gatinho, às vezes, quer matar alguma recôndita e indecifrável saudade de sua encarnação como trapezista e sobe no estreito varal entre a pia e a janela e caminha minuciosamente com suas patinhas agarrando o fio de nylon.
Nenhuma mãe gosta de dizer que tem um filho preterido, mas abertamente revelo que Ravel é meu xodó. O companheiro mais fiel e que está sempre ao meu lado quando me posto diante da mesa para estudar. Estica seu corpinho todo e coloca a cabeça sobre os livros, como se fossem confortáveis travesseiros. Não me cansa de surpreender, de comoção, quando começa a solicitar carinho abrindo sua barriguinha e alternando posições para que eu massageie todos os lados do seu caloroso e peludo corpinho. É sonolento como todos os felinos, mas aprecia a noite com vivacidade e acuidade. Ora sozinho, ora com o irmão de coração e a mãe, posiciona-se na banquetinha branca de frente para a janela e fica contemplando os mistérios da noite e as vizinhas que passam. Músicas instrumentais e clássicas o deixam calmo e introspectivo. Ainda não lhe apresentei ao grande músico francês que lhe inspirou o nome. Então, fica para a próxima o Bolero de Ravel.
Entre os fios do bigode que miram todo o possível espaço, um coraçãozinho rosado sente o cheiro do ar.
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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