Garfil: meu girassol peludo
Garfil: meu girassol peludo
Capitu com a barriga volumosa e muito redondinha, aguardava a chegada de três filhotes, conforme descreveu o ultrassom. As moças responsáveis pela limpeza do condomínio apostavam com quase total convicção que o pai era o caramelado e viril Chorão. No fundo, eu estava gostando bastante da suposição, pois contava com a chegada ao menos de um rebento igual ao pai.
Quando Capitu deu a luz, nenhum dos três esmirradinhos gatinhos passava perto do tom caramelado, com nuances de anéis dourados, que contornavam toda a pelagem de Chorão. Como descrevi crônicas atrás, dois saíram ao modelo da mãe e um todo camuflado. Joguei para os ares o desejo de cuidar de um felino todo amarelinho.
Nessa época, a nobre família felina de acinzentados, que por vezes me visita nas frestas das janelas à procura de ração, não havia ainda ampliado. Imagino que só a mãe, que segundo minha irmã, é a própria namorada do Gato de Botas, se escondia do sol nas manhãs e tardes debaixo dos carros.
Não demorou mais que cinco minutos, para que concentrada no som, achasse seu ponto de partida num buraco bem próximo à passagem do grande portão de entrada. Pois lá estava, encolhidinho e todo amarelinho o felino portador do grito de socorro insistente. Mesmo pequeno, mostrava-se bastante inquieto e selvagem, somente com a ajuda amigável de um dos porteiros, conseguimos retirá-lo daquele lugar tão estreito e nada aconchegante, o qual ele tentou se acomodar ou, inteligentemente, chamar a atenção de algum transeunte.
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Fui carregando no colo até meu apartamento aquela coisinha, que mais parecia um novelo de lã todo amarelinho. Ao abrir a porta Capitu e Ravel não responderam muito afáveis à chegada de um suposto novo habitante. A matriarca projetou as garras para fora e os dentes pontiagudos, impondo sua posição de rainha absoluta do lar, enquanto Ravel, obediente à mãe, ficou quieto e pouco demonstrou objeção.
A primeira medida foi dar um banho no novo hóspede, que ofereceu uma resistência suportável a tão temida água. Arranhou-me um pouquinho nas mãos, mas deixou que eu acariciasse com shampoo de gatinho seu pequenino crânio, a barriga e as patinhas, com almofadas macias para o pouso leve e elegantemente silencioso. Enxuguei-o na toalha e depois no secador de cabelos. Sequinho e perfumado, o espertinho correu para a minha cama, se enrolou sobre si mesmo como uma rosquinha e ficou me olhando com o olhar mais terno, sedutor e misterioso, que só um felino sabe mostrar. Claro que não resisti e tratei de apresentá-lo devidamente a Capitu e Ravel, como mais um integrante de nossa família.
Para ele não escolhi nome de personagem de livro, nem de músico, pois tornou-se inevitável a comparação com o famoso gato Garfield, do cartunista Jim Davis. Como quis abrasileirar um pouco, reduzi duas letras e transformei-o em Garfil. Meu felino cor de sol, caramelo e girassol, é tão preguiçoso e senhor de si, quanto o personagem de Jim Davis. Hoje, já com o porte de um macho adulto, adora ser cortejado por Capitu, que acabou adotando-o como filho. Procura a mãe para receber muitos banhos de língua e carinho, e o irmão de coração Ravel é companhia inseparável para as traquinagens da madrugada.
Como todo filho é único, Garfil é carinhoso à sua maneira, e quando está disposto permite-me acariciar seu crânio e suas orelhas demonstrando um prazer enorme com os olhinhos fechados. Seu focinho é mais rosa que o do irmão Ravel, mas ao invés de formar um coração, compõe uma nuance especial diante de tanto sol luzindo em seu pelo. Garfil é meu leãozinho, meu girassol peludo.
Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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