Entrevista com o m?sico e pesquisador M?rcio Gomes

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Entrevista com o m?sico e pesquisador M?rcio Gomes

Entrevista com o músico e pesquisador Márcio Gomes

 Daniela Aragão 16/04/2018

Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?

Márcio Gomes: Em minha família algumas pessoas “arranhavam” alguns instrumentos: meu avô tocava um pouquinho de acordeon, minha tia tocava órgão e cantava na igreja e um tio tocava violão. Eu me lembro, em minha infância, de vê-los tocar uma vez ou outra. Sempre gostei muito de escutar música. Eu me recordo da época das vitrolinhas, da Jovem Guarda, assistia aos Festivais da Canção... Mais tarde, até por uma questão de ambiente e amizades, tive uma fase Pink Floyd, Yes, o rock mais antigo. Eu escutava, gostava, mas não era aquilo que me tocava de fato.

Lembro-me muito bem, um dia eu estava em casa e encontrei um disco do meu irmão chamado “Saraus de Jacob”. Gravações que o Hermínio Bello de Carvalho tinha coletado. Um disco importante na história do choro. Coloquei aquele disco desconhecido na vitrola e, ao ouvir, pensei, “- Ah isso aí mexe comigo”.

Daniela Aragão: É possível ainda lembrar o repertório?

Márcio Gomes: Tinha a descrição no LP de que era uma reunião musical na casa de Jacob do Bandolim, durante a qual ele tocava alguns choros clássicos como “Cochichando”, “Brejeiros”, “Noites Cariocas” e “Murmurando”. Havia também outro LP, do bandolinista Déo Rian, no qual ele era acompanhado pelo Quinteto Villa Lobos e por um regional composto pelo Canhoto no cavaquinho, Dino no violão e Gilberto no pandeiro, e tocavam somente Ernesto Nazareth. Comecei a ficar fascinado por este estilo de música. Esses dois discos me introduziram no universo do choro.

Daniela Aragão: Muito boa entrada na música.

Márcio Gomes: Ah sim. Coincidentemente, nessa época, meus irmãos e meus primos montaram um grupinho de samba para tocar nas festas de aniversário, em casa e nas casas dos amigos. Até aí eu nunca havia tocado e tentava acompanhá-los batucando na mesa. Como eu era o irmão mais novo, eles não deixavam e ainda diziam que eu estava atrapalhando.

Daniela Aragão: Você começou pelo pandeiro?

Márcio Gomes: O que me aconteceu foi uma história interessante. Eu estava estudando para o vestibular, com um amigo que tocava na banda Tenente Januário, na época. Como meus irmãos começaram essa coisa do conjunto, alguém pegou um pandeiro emprestado, que ficou lá em casa por uns dias e sem ninguém saber tocar. O meu amigo, que tocava na banda, viu o pandeiro e começou a me mostrar como se tocava: “- Oh, toca assim, toca bem quadrado, um, dois, três, quatro”. Comecei a experimentar uma maneira de executar, colocava um disco de choro ou de samba e ia tentando acompanhar. Eu ficava o tempo todo ali sozinho, “um, dois, três, quatro”, ouvindo e começando a tocar. Como o pandeiro era emprestado, um dia meu irmão devolveu para o dono. Então pedi a meu pai um pandeiro, que foi comprado na antiga loja “A Musical”.

Daniela Aragão: A saudosa loja “A Musical”, que ficava na galeria.

Márcio Gomes: Exatamente ela. Compramos um pandeiro que encontramos por lá. Fui então aceito pelo conjunto e comecei a tocar. Nessa época eu já ouvia o conjunto do Ministrinho, que se apresentava muito no “Bar Tropical”. Eu me lembro, também, de uma casa noturna no bairro Santa Luzia onde ele se apresentava. Eu ficava observando o pandeirista do conjunto do Ministrinho, prestando atenção nos detalhes e depois tentava reproduzir de acordo com o som que me chegava.

Daniela Aragão: E a partir daí você foi se encorajando e seguindo com o pandeiro?

Márcio Gomes: Fui seguindo, seguindo. Na década de setenta ocorreu a explosão do Choro no Rio de Janeiro. Eu tinha parentes no Rio e então aproveitava para ir para lá todos os finais de semana. Pegava o ônibus da Útil munido do Jornal do Brasil, que me sinalizava os lugares em que eu encontraria Choro na cidade. Comecei a frequentar os shows de Choro em vários locais, inclusive no Museu da Imagem e do Som.

Daniela Aragão: Você viajava para o Rio para assistir ou já almejando tocar?

Márcio Gomes: Só para assistir. Não tinha a menor pretensão de tocar naquele time. Eu me contentava só de ver. Mas daí, você vai observando e então chegou o momento em que criei uma amizade com um pessoal de Niterói. Eram irmãos que tocavam violão, cavaquinho e bandolim, mas não tinha pandeirista na turma. Aí, a Prefeitura do Rio começou a promover uns concursos de conjunto de choro, no final da década de setenta, e eles escreveram uma carta para mim, me convidando para ser o pandeirista do grupo. Comecei a tocar com eles e os caminhos foram se abrindo. Pouco tempo depois, no grupo “Nó em pingo d’água”, o Celsinho Silva saiu para tocar na banda do Paulinho da Viola e eles ficaram sem pandeirista. Chamaram-me e fui pra lá. Fiquei por mais de cinco anos no conjunto e criei muita amizade com o pessoal do choro, de uma geração que hoje está comandando, como o Maurício Carrilho e a Luciana Rabello. Esse pessoal iniciou junto comigo, mas eles seguiram carreira profissional. Eu, como já trabalhava na Receita Federal, tive a música como outro ofício, ao qual eu podia me dedicar... me dedicar, escolhendo mais as oportunidades.

Daniela Aragão: Você chegou a tomar aulas?

Márcio Gomes: Não, de pandeiro não. Na época não era muito comum pegar aula de percussão.

Daniela Aragão: Tem o Marcos Suzano...

Márcio Gomes: Acho que o Marcos Suzano é mais novo, ou regula a mesma idade comigo. Acho que ele foi o primeiro cara que enxergou essa possibilidade de oficinas para o ensino do pandeiro. O pessoal mais antigo, de um modo geral tinha medo de ensinar o segredo para a garotada e “perder o emprego”.

Daniela Aragão: O mestre passar o conhecimento e ser superado pelo aprendiz.

Márcio Gomes: Havia essa mentalidade. Eu convivi muito com o Jorginho do Pandeiro, que é um ícone. Mas o que aprendi foi olhando o Jorginho tocar, ele não dava aulas.

Daniela Aragão: O que veio a te dar também sua marca própria, o seu estilo.

Márcio Gomes: Lá em Niterói tinha um cavaquinhista, o Jonas, que era o preferido do Jacob do Bandolim. Tocar pandeiro com o Jonas era uma verdadeira aula. Ele tinha uma levada de cavaquinho que o Jacob do Bandolim lhe ensinou. Isso servia como referência, para você enxergar o papel do pandeiro dentro dessa formação instrumental. O Jonas tinha fama de dar esporro em pandeirista, porque ele era muito exigente. Eu prestava atenção no que ele achava válido, pertinente, e nunca levei puxão de orelha dele.

Essa coisa de aula de pandeiro eu nunca tive. Não era comum ter aula de pandeiro. De uns tempos para cá é que começou esse lance de oficina. Muitos percussionistas passaram a fazer oficina de escola de samba, samba em geral. De conga, de ritmo pernambucano. A loja Maracatu Brasil, no Rio, começou a oferecer aulas de percussão. Passei a frequentar essas oficinas. No período de férias, eu fazia todas as oficinas de percussão que apareciam, sempre com a preocupação de gravar, de perguntar, tirar dúvidas. Fui acumulando informações, um pouquinho aqui, um pouquinho acolá.

Daniela Aragão: Quais oficinas você pode citar como importantes?

Márcio Gomes: Eu frequentei muito as oficinas do mestre Odilon. Atualmente ele só dá aulas, mas foi mestre de bateria da Beija Flor, da Grande Rio, da União da Ilha. Fiz aula de zabumba com o Durval Pereira, que tocou com o Jackson do Pandeiro e atualmente toca com o Carlos Malta. Também estudei os ritmos do Candomblé com Humberto Balogum, que é um cara que fala Iorubá e explica tudo sobre esses toques. Fiz aulas com Carlos Negreiros, que também explicava os toques de cada tambor. Como resultado, mesmo que você não toque regularmente determinado instrumento, passa a ter informações úteis, que aproveita para outras coisas. Até para enxergar nuances.

Daniela Aragão: Esse adentrar sério e curioso fez com que você aprimorasse a sua execução e se tornasse um pesquisador de música. O que motivou seu interesse em buscar os recônditos da música de Juiz de Fora?

Márcio Gomes: O gosto pela história. Você também traz esse carimbo, Daniela, o gosto pela pesquisa aprofundada. Uma característica que se aplica tanto na formação e na execução dos instrumentos, como também no interesse em buscar informações a respeito. É o lance de você ouvir, querer aprender, mais do que querer ensinar. Sempre fui mais de ouvir e prestar atenção. Para mim é muito mais enriquecedor. Não me nego a passar informação. Gosto muito mais de ir beber na fonte. Foi minha convivência com o Ministrinho me chamou atenção para as obras musicais que foram criadas em Juiz de Fora, desde a década de trinta.

Daniela Aragão: Fale sobre sua convivência com o Ministrinho.

Márcio Gomes: Me lembro bem da primeira vez que toquei com ele. Eu ia sempre aos lugares em que o Ministrinho tocava e só ficava ouvindo.  Uma vez no bar Capricórnio, ele estava tocando violão e eu tomando uma cerveja. Tinha um pandeiro sobre a mesa de alguém. Não sei como, ele sabia que eu tocava pandeiro. Ele pegou o pandeiro, me entregou e falou: “- Toca aí”.

Peguei o pandeiro, deu certo e a partir daí eu “colei” nele. Nesse meu tempo de estudante eu estava sempre tocando com o Ministrinho. Havia um bar na Braz Bernardino chamado Capricórnio, Ministrinho ia lá todos os dias durante a semana. Ele cantava suas músicas e também as composições do Ciuffo e de seu irmão Alfredo Toschi, ao lado de alguns clássicos.

Comecei a gravar essas músicas com ele e com o Luizinho, que era crooner do seu conjunto: às vezes, eles iam para a minha casa e ficavam tocando samba e eu gravava tudo. Com o Luizinho fui pegando um acervo muito grande de músicas de Juiz de Fora.

Daniela Aragão: Você armazenou esse material?

Márcio Gomes: Eu gravava tudo em fita k7. Depois, quando tive a oportunidade, levei ao estúdio Nave e digitalizei. Essa pesquisa tinha mais o repertório da Turunas do Riachuelo. Depois o Mamão me apresentou o João Mansoldo, que estava para a “Feliz Lembrança” assim como o Luizinho estava para a Turunas. O João Mansoldo era outra enciclopédia. Ele me passou os sambas do João Cardoso, do Danilo Soares e outros compositores da “Feliz Lembrança”... Ele cantava e contava a história do samba e eu ia gravando tudo. Nessa época, eu nem pensava em produzir CDs com esse material usando os recursos da Lei Murilo Mendes.

Daniela Aragão: Seu primeiro disco financiado pela Lei Murilo Mendes é dedicado ao Ministrinho.

Márcio Gomes: Exatamente. Um projeto que não foi aprovado de imediato por questões formais. Neste tempo, o Ministrinho já estava muito adoentado. Juntei um dinheiro com uns amigos e começamos a gravar em estúdio. Quando conseguirmos aprovar o projeto e lançar o disco, o Ministrinho já tinha falecido.

Daniela Aragão: Acho muito bonito o trabalho sobre a Dionysia.

Márcio Gomes: O CD da Dionísia Moreira foi através do vereador Castelar. Eu conhecia pouco a Dionysia, foi o Castelar quem me apresentou. Marcamos um encontro com ela, que cantou para mim algumas coisas à capela. Ela estava com 82 anos, mas a voz é de 22. Agora está com 86 e continua cantando, e bem, com a mesma afinação de quando era jovem. Assim como o Jamelão, que foi até o final da vida cantando bem.

Daniela Aragão: A partir do encontro você formulou o projeto do disco?

Márcio Gomes: Comecei a imaginar qual seria o formato ideal para a Dionysia, qual seria o tipo de repertório... Escolhemos algumas músicas que ela já cantava e lhe apresentei composições de outros músicos contemporâneos, como o Toinho Gomes, o Kadu Mauad... Um disco que não tem cavaquinho nem tamborim. Dois violões e percussão leve.

Daniela Aragão: E o disco do Cocada?

Márcio Gomes: São sambas da Turunas do Riachuelo, com Roger Resende cantando músicas de autoria do Nilton Cocada. O projeto é meu e os arranjos foram feitos por um amigo do Rio, com bastante batucada. Nos discos que eu produzo, sempre toco percussão em quase todas as faixas. Gosto de tocar no estúdio, pois lá tenho condição de reconhecer melhor as minhas deficiências e ir me aperfeiçoando.

Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida?

Márcio Gomes: a música, para mim, é uma forma de expressão, é como eu me insiro no mundo e me relaciono com as pessoas. É tão necessária quanto respirar.