Feliniando

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Feliniando
Daniela Aragão 11/06/2015

Feliniando

"Prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Esta frase extraída da canção de Raul Seixas guardo comigo como uma espécie de amuleto, quando a vida me empurra para novas empreitadas e desafios. Ontem resolvi postar em meu blog uma crônica escrita há cerca de uns oito anos, para uma coluna que mantive quinzenalmente no jornal de Cataguases. Como de costume, meu assunto recorrente por lá também era música, mas vez em quando o pulsar da vida me conduzia a contar algum fato cotidiano. Na crônica intitulada "Esse cães, gatos e lagartos" relatei meus encontros, desencontros, dores, alegrias e impaciências com um cão vira-lata que encontrei numa noite no meio do asfalto e que cheguei a confundi-lo com um rato, de tão pequeno e frágil.

Seu nome era Vitório "Como qualquer cão de sua idade, Vitório era um vira-lata de estirpe, raçudo e muito do espevitado. A mistura de bassê com outra raça desconhecida dava-lhe a graça dos movimentos. Suas patas marcando sempre dez pras duas, ao estilo de um bailarino, como se em permanente "plié", faziam dele um "cão artista". Mas o artista fazia um catatau de firulas: latia alto, corria até o banheiro e desenrolava todo o rolo de papel higiênico, virava a lata de lixo da cozinha, comia os dicionários e os calçados, rasgava todos os pacotes de bombril e esfregava casa afora, dava saltos altíssimos como um malabarista de circo, fazia tudo que tinha direito embaixo da cama (às vezes em cima) e perto da televisão – e ainda exercitava um de seus maiores prazeres, que era morder os pés e arranhar as pernas de quem via pela frente. Por muito amor e solidariedade a tanta energia, eu deixava as minhas pernas arranhadas e acho que as pessoas que me viam chegavam a duvidar se eu seguia os preceitos de Nelson Rodrigues".

Resisti três aventureiros meses a inquietude canina, até que colocaram embaixo de minha porta um aviso. Vitório seria a pauta da próxima reunião de condomínio, que discutiria sua impossível permanência ali no edifício entre vizinhos sisudos, elevadores espelhados e portaria acarpetada.

Após a "forçada" doação de Vitório para o porteiro do edifício, ainda experimentei outros cães espevitados como Lola, que ganhei de Bruce, um dos mais folclóricos personagens de Ouro Preto, que vivia sua vida junk sem paradeiro fixo. Dizem que a mãe de Lola resistiu bravamente ao lado de Bruce numa temporada como hóspede da "Cachoeira das Andorinhas". Por lá enfrentavam bruscas mudanças de temperatura numa considerável altitude, além da escassez de alimento. Lola, que herdou o nome da personagem de Fassbinder, era desprovida do mínimo senso de elegância comportamental. Vivia a maior parte do tempo no quintal de minha casa, que dava visão para um pequeno fragmento do Pico do Itacolomi. Como o sol pouco despontava quente e pleno em Vila Rica, eram raras e comemorativas as oportunidades que encontrava para estender minhas roupas lavadas sobre um varal improvisado. Se me mantinha ausente por conta de trabalho durante muitas horas, ao retornar ao quintal deparava-me com todas as toalhas pisoteadas, os vestidos pigmentados com a cor da terra e os lençóis às vezes mastigados pela fúria de Lola, que para me castigar por sua solidão, não deixava sequer uma peça sobre o varal.

Minha experiência com cães não foi lá digamos um êxito, mas findei a crônica "Esses cães, gatos e lagartos" insistindo em dizer que os amava mais que os gatos. Seguindo o fluir camoniano "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/Muda-se o ser, muda-se a confiança/Todo mundo é composto de mudança/Tomando sempre novas qualidades". Estou apaixonada há tempos pelos gatos. Gatos que encantaram Baudelaire: "Les amoreux fervents et lês savants austères//ils prennent em songeant lês nobles attitudes/Des grans sphinx allongés au fond dês solitudes/Qui semblent s'endormir bas um revê san fin". Gatos que marcaram a escrita visceral, dialógica e urgentemente eclipsada de auto-vida de Ana Cristina César: " eu- o gato – e a grafia de minhas garras:/toma: lê o que escrevo em teu rosto/ lê o que rasgo – e tomo- de teu rosto/A parte que em ti é minha –é gato/leio onde te tenho gato/e a gatografia que nunca sei/aprendi na marca do meu rosto/aprendi nas garras que tomei". Gatos que se transformam numa delicadeza ludicamente encantadora pelos versos de Ferreira Gullar, musicados por Adriana Calcanhotto: " O gato é uma maquininha/que a natureza inventou/ tem pêlo, bigode, unhas/e dentro tem um motor/Mas um motor diferente/desses que tem nos bonecos/porque o motor do gato/não é um motor elétrico/É um motor afetivo/que bate em seu coração/por isso ele faz Ron-ron para mostrar gratidão".

Não me extenuaria citando adoradores de gatos entre o universo musical, poético e plástico. Gaia e Dora, minhas lindas ex felinas juizforanas, diariamente me deixavam com ar contemplativo e embasbacado diante da elegância e beleza de seus mínimos gestos. O porte nobre, de sábias e independentes senhoras de si embevecia-me, gatos não enrijecem nenhum músculo desnecessariamente. Um aprendizado para nós humanos, tão endurecidos pelas pressões da vida.

Por ser a primogênita, Gaia portava-se como a verdadeira rainha que estabelecia os comandos no espaço doméstico. Ah, como vivenciei instantes de pura poesia nos momentos em que ela e Dora se posicionavam encolhidas e aconchegadas como dois caracóis sobre minha mesa de trabalho acompanhando-me nas atividades. Ao vê-las dormindo serenamente, minha alma quase sempre inquieta, encontrava brechas de calmaria.

Quis a força do destino mais uma vez me conduzir para uma mudança, desta vez de estado, clima e cultura. O prazo era curto e o coração necessitava ser forte para equalizar a expectativa do novo e a dor por mais um desfazimento de casa, o que inevitavelmente implicava a dissolução e renovação de alguns sonhos. Fui encaixotando meus livros, discos, filmes, quadros, colares, echarpes e roupas, para que tudo pudesse ser reduzido a uma pequena mala com limite de 20 Kg. Lágrimas de euforia, dor, medo e alegria despontavam de meus olhos, que somente viam o caramelado dos olhos de Gaia e Dora, enquanto em meus ouvidos Elis cantava sem parar: "Afora isto ia indo/atravessando seguindo/nem chorando nem sorrindo/sozinha pra capital".