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"Tenho uma família grande, só não moro com ela"
Confira abaixo a entrevista com a fã dos Racionais MC’s que sonha em colocar mega-hair.
Carolina Fellet: A maior parte da população em situação de rua é masculina. Como é ser mulher nesse cenário?
Bárbara Correa: É muito difícil ser mulher na rua. Tem homem que é muito “para frente”, que desrespeita. E mulher é diferente: menstrua, precisa de um banho, de uma higiene maior do que a do homem. Essa parte é bem difícil. A gente se vira, com banho de canequinha ou no albergue. Mas tem o seu lado bom também: tem pessoas que ajudam mais a gente do que os homens.
Carolina Fellet: Por que você veio morar na rua, Bárbara?
Bárbara Correa: Decepção. Muita decepção: falta de família, carinho e diálogo. Aí, fica muito difícil, né?
Carolina Fellet: Como é ter o céu como teto?
Bárbara Correa: É meio complicado. Eu estou sempre gripada e com a voz rouca. Para quem teve uma casa um dia, acordar sem ela é complicado. Quando está chovendo, eu não posso dormir ali (Rua Benjamin Constant, ao lado da Igreja Melquita) porque molha tudo. Aí tem que arredar para baixo, aí tem que tomar cuidado para não molhar o cobertor; se molha o cobertor e não dá sol, tem que pedir aos outros um cobertor. É muito difícil.
Carolina Fellet: Na rua, você fica superexposta. Há algum constrangimento por que já passou?
Bárbara Correa: Já. Eu estava dormindo, na época em que meu marido estava preso, e o cara de uma construção estava em cima de mim. Eu acordei e comecei a gritar; os vizinhos chegaram na janela. Eu não chamei a polícia porque fiquei com medo. Eu estava sozinha. Ele não apareceu mais não, mas eu fiquei com medo.
Carolina Fellet: Por outro lado, qual foi o maior gesto de carinho que você já recebeu desde que veio para a rua?
Bárbara Correa: Conheço pessoas que me ajudam muito, dona Cláudia, dona Arlete, dona Marli e tem pessoas que nem conheço, mas que (se) lembram de mim, entendeu? Por esse lado, eu sei que tenho uma família grande, só não moro com ela. Gesto de carinho que tive na rua? É quando as pessoas olham para mim com dignidade, imaginando que eu sou um ser humano igualzinho a elas e não viram a cara. Quando você fala “Bom dia, moço. Deus abençoe seu dia” e ele responde: “Amém. O seu também!”.
Carolina Fellet: Você escolheu morar ao lado de uma igreja de propósito? Por quê?
Bárbara Correa: Eu quis morar ali, porque fui criada no Orfanato São Pascoal (que fica perto da Melquita) e fui batizada nessa igreja. Morei lá durante oito anos da minha vida. Comecei a trabalhar cedo e nunca vi salário, minha filha. Eu nunca trabalhei de carteira assinada na minha vida.
Carolina Fellet: Como é sua relação com os fiéis: você se sente invisível ou eles costumam se aproximar para ajudá-la?
Carolina Fellet: O que é Deus?
Bárbara Correa: Tudo. Deus é meu alicerce, mas às vezes eu acho que ele não (se) lembra de mim; é um momento por que eu tenho que passar. Nada vem fácil. Nada é por acaso. Eu sei que eu estou passando por isso ou por alguma coisa que eu fiz ou por alguma coisa que eu vou adquirir um dia e dar valor. Mas essa tempestade está custando a passar.
Carolina Fellet: Você tem alguma ambição material?
Bárbara Correa: Eu tenho. Ter uma casa muito bonita, muita roupa, muito sapato, produto de beleza que eu gosto. Meu sonho mesmo é pôr um cabelo, um mega-hair.
Carolina Fellet: Você sonha com alguma grande mudança em sua vida?
Bárbara Correa: Sonho em ter meus filhos perto de mim.
Carolina Fellet: Que parte de você é velha? E jovem?
Bárbara Correa: Que parte de mim é velha? Hehehehe Nada! Eu sou uma criança grande. Eu tenho 38 anos nas costas e acho que nem juízo direito eu tenho. Eu acordo de madrugada, faço pirraça, choro quando quero comer.
Carolina Fellet: O que a distrai? E aborrece?
Bárbara Correa: Escutar Racionais MC’s. Isso é uma distração; eu amo rap. A falta de oportunidades, de reconhecimento me aborrece. A falta de vergonha do governo, que está roubando demais e (se) esquecendo dos irmãozinhos que estão aqui embaixo caidinhos. Eu não tenho televisão, mas eu fico por dentro das coisas porque eu gosto de ler jornais. Não é o Brasil que é desigual, são as pessoas que são desiguais. As pessoas pensam só nelas.
Carolina Fellet: O que é a vida?
Bárbara Correa: Nossa! Eu nem sei o que é a vida para mim. A vida é uma oportunidade que Deus dá para a gente, né? Saber viver a vida bem, respeitar todo mundo, apesar de todo mundo errar. A vida é para ser vivida.
Carolina Fellet: Ao acordar, em que você pensa?
Bárbara Correa: Mudar de vida. Eu imagino estar dentro da minha casa.
Carolina Fellet: O que é solidão?
Bárbara Correa: Solidão? Às vezes, eu “tenho ela”. É quando eu estou na comarca sozinha e não vejo nada ao meu redor. Quando eu não tenho expectativa de ter alguma coisa, quando eu já desisti e quero chutar o pau da barraca, aí eu me sinto sozinha.
Carolina Fellet: Qual mensagem você deixaria para a sociedade?
Bárbara Correa: Se todos fizessem um pouquinho, o mundo seria melhor, o Brasil seria melhor. Às vezes, a pessoa que mora na rua só quer um pouco de atenção, uma oportunidade. Muitos não querem nada, querem só vida fácil, mas nem todo mundo é assim; nem todo mundo é ladrão, nem todo mundo é pilantra. No meio de mil moradores de rua, você encontra uns 30 que querem mudar de vida. Não precisa da sociedade passar a mão na cabeça, não, mas não precisa discriminar como discrimina.
Carolina Fellet: Como é a sua rotina?
Bárbara Correa: Cato meus recicláveis. Adoro catar. Separo e vendo. Meu dia a dia é esse. Mas tem dia em que quero dormir o dia todo e não saber de nada. Costumo ir à igreja também. Estava indo direto.
Pingue-pongue:
Sexo: Importante.
Drogas: Ilusão.
Sonho: Ter minha casa.
Uma frase: “Guerreiro de fé não gela.”.
Carolina Fellet é jornalista e ama escrever sobre cotidiano e metafísica. Ela mantém a página Império do Mínimo no Facebook.
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