Maldade atingiu novo patamar no Brasil, dizem economistas

Por EDUARDO CUCOLO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Tudo o que eu falo é tirado de contexto. A frase do ministro Paulo Guedes (Economia) resume o espírito do livro "Antologia da Maldade 2: Epígrafes para um país estressado" (Ed. Zahar, 2022), dos economistas Gustavo Franco e Fabio Giambiagi.

Em conversa com a reportagem, os dois afirmam que a reedição da parceria iniciada em 2015, com a primeira antologia, impôs um desafio. Os grandes pensadores da humanidade continuam lá, mas onde antes havia Dilma Rousseff, como comédia, agora há Jair Bolsonaro, como tragédia.

No primeiro livro, a maldade praticada pelos autores da coletânea ?"nossa missão neste livro é distorcer o sentido original das coisas"? era definida como malícia, ironia, sarcasmo. Na nova antologia, alguns atores políticos trazem a "maldade em estado puro", "no sentido literal da palavra".

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PERGUNTA - O subtítulo da antologia de 2015 era "um dicionário de citações, associações ilícitas e ligações perigosas". Agora, são as "epígrafes para um país estressado". O que mudou no país entre esses dois momentos de crise institucional?

GUSTAVO FRANCO - Essas coletâneas são uma espécie de panorama da época. O subtítulo da primeira tinha uma alusão, não acidental, à Lava Jato, tema que dominava o país na ocasião. Numa outra ponta, havia Dilma Rousseff, autora de muitas frases interessantes, que normalmente não são incluídas em pensamentos elevados, mas eram divertidas. A gente talvez tenha aprendido a apreciar esse humor depois.

Quando se compara com Jair Bolsonaro, é completamente diferente. Ele não tem essa graça, essa leveza que a Dilma tinha quando falava do armazenamento do vento. Não tem esse tipo de humor. É discutível se tem algum. Se tiver, é algo próximo do grotesco, que é uma região muito distante do que essa antologia procurou no primeiro volume. Foi um certo esforço para acomodar as falas de Bolsonaro.

Agora, elas são ilustrativas do país estressado que hoje nós somos. Antecipamos, acho que corretamente, que com a aproximação da eleição esse estresse só ia aumentar. Tentamos achar um tanto de leveza e humor neste ambiente conturbado. Se é que é possível.

FABIO GIAMBIAGI - Em 2015, a gente estava em uma situação econômica extremamente delicada naquele contexto de recessão, e o humor era uma forma de escapar daquelas angústias. Agora, a situação econômica em certo sentido está melhor, mas as angústias existenciais do país mudaram de patamar. O que torna o exercício mais difícil, no sentido de que há situações que evidentemente não se prestam para o humor.

Para mim, lidar com o livro foi uma espécie de catarse, para desafogar as tensões desses últimos dois ou três anos, que foram ruins para todo mundo. A gente espera que esse seja o sentimento do leitor também.

P - O conceito de maldade, nos livros, também mudou?

GF - No prefácio do primeiro há uma explicação mais erudita do assunto. Essencialmente, a gente está tratando da maldade como sinônimo de ironia, sarcasmo, algo assim. No segundo, no contexto de polarização política que a gente tem hoje, foi preciso elaborar um pouquinho mais esse sentido, já que tem muita maldade ?maldade mesmo? na atmosfera. No prefácio há uma observação de que não queremos tomar partido. Nosso ponto de vista é o da cobra, do veneno. O aspecto que a gente procura é esse da malícia, do sarcasmo. Não é tão fácil de achar nesses dias, como foi no passado, porque os ânimos estão muito exaltados.

FG - Quando enviei os convites eletrônicos [para o lançamento da obra], vários amigos me responderam que realmente esse tema está muito em voga, da maldade no sentido literal da palavra. A Polícia Federal pediu reforços em função de ameaças ao ex-presidente Lula. Tem muita gente com arma. Estamos falando da maldade em estado puro.

A nossa maior maldade é com a única frase que está duplicada no livro, do Henry Kissinger [ex-secretário de Estado americano], que fala da deficiência na liderança política em muitos países e que a gente, não por acaso, repetiu associada às duas principais candidaturas [verbetes Bolsonarismo e Lulopetismo]. É uma maldade bastante grande, mas no sentido malicioso, inocente.

P - Ao tirar algumas frases de contexto e classificá-las em uma temática, vocês dão uma característica autoral a um livro de citações. Nesse sentido, a maldade vem não do autor da frase, mas dos autores do livro?

GF - É exatamente a ideia. Quase todas as coletâneas se organizam com esse formato, com verbetes, temas que o leitor vai consultar, se ele precisa de uma ideia, de uma frase sobre um tema de seu interesse. A graça é colocar junto com a frase esperada alguma coisa inesperada, maliciosa. Esse é o ângulo venenoso. Aí você vai fisgando o leitor progressivamente a cada pedaço do caminho e vira um livro que tem fluência.

FG - A gente desenvolveu um paralelo entre livros de aforismos e restaurantes. Livros de aforismos há milhares mundo afora, e qualquer cidade grande tem um monte de restaurantes, mas sempre há espaço para mais um. Só que você tem de se apresentar ao público como se o seu fosse efetivamente algo diferente.

P - Como foi a coleta de citações para o segundo livro. Há material para um terceiro?

FG - Em outra entrevista eu brinquei com a possibilidade de fazer uma série tipo "Velozes e Furiosos" literários. Mas não há nada definido. Quando a gente lê jornais, livros etc., coisas que para algum leitor passariam batidas, no caso da gente surge aquele clique: isso aqui dá uma boa frase.

Um exemplo do jornal de hoje [última quarta, dia 10] é a coluna do Elio Gaspari, que cita um comentarista político americano que, em algum momento, quando foi candidato na base da galhofa à prefeitura de Nova York, foi perguntado qual a primeira coisa que faria caso fosse escolhido. A resposta, com humor, foi: pedir recontagem de votos. Isso se encaixaria perfeitamente no verbete "urna eletrônica". Quando a gente percebe já tem várias páginas que podem ser potencialmente um novo livro.

GF - O Fabio tinha uma coleção inicial gigante de citações, mas só com gente séria. Quando começamos a falar desse projeto [em 2014] é que veio a ideia de misturar essa coleção com coisas do dia a dia. Basta ler o jornal com atenção que você coleciona uma, duas, cinco, vinte frases interessantes todos os dias. É inesgotável.

E o verbete permite que você extravie a frase original do seu contexto, de propósito. A coisa adquire sentidos novos, mais interessantes, adicionais ao original. Essa fórmula parece muito fácil de ser replicada inúmeras vezes. Cada rodada tem um contexto. Na primeira tinha um enredo central que era Dilma Rousseff e suas frases. Agora, é como se misturam esses pensamentos elevados com Jair Bolsonaro. Isso é um grande desafio.

P - ???A Argentina teve mais ou menos espaço no livro desta vez? Até porque o papa, também citado, agora é argentino.

FG - O peso é similar. Claramente aí tem a minha influência. Eu sou filho de argentinos. Nasci no Brasil, fui para a Argentina com dez meses e voltei quando meus pais tiveram de sair de lá em 1976. Formalmente não tenho nada a ver com a Argentina, mas as raízes e o sotaque me denunciam.

A primeira coisa que faço todo dia é dar uma passada de olhos pela imprensa argentina. É como um vício. Tem uns caras que são grandes frasistas, acabam trazendo boas frases que podem ser adaptadas e lidas à luz da realidade brasileira. Até pelo fato de que alguns dos nossos problemas são muito parecidos. Na macroeconomia, melhoramos muito nos últimos 30 anos relativamente a eles, mas os problemas sociais, a dificuldade de crescimento e desequilíbrios têm algum grau de semelhança. Além de um populismo desvairado que corre pelo sangue de ambos os países.

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ANTOLOGIA DA MALDADE 2: EPÍGRAFES PARA UM PAÍS ESTRESSADO

Preço R$ 89,90 (impresso) R$ 39,90 (ebook)

Autor Gustavo H.B. Franco e Fabio Giambiagi

Editora Selo Zahar

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RAIO-X

GUSTAVO H.B. FRANCO, 66

Sócio fundador da Rio Bravo Investimentos e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio. Foi presidente do Banco Central de 1997 a 1999. É bacharel e mestre em Economia pela PUC-Rio e Ph.D pela Universidade de Harvard.

FABIO GIAMBIAGI, 60

Pesquisador associado do FGV Ibre. É bacharel em Economia e mestre em Ciências Econômicas pela UFRJ. Autor, organizador e co-organizador de mais de 35 livros sobre a economia brasileira. Entre eles, Tudo Sobre O Déficit Público (2021).