Apagão da máquina e risco a aposentadorias expõem dificuldades no desfecho de Bolsonaro

Por MATEUS VARGAS

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Mesmo depois de cinco alterações na principal regra fiscal do país para conseguir ampliar gastos durante sua gestão, o presidente Jair Bolsonaro (PL) chega ao fim do mandato diante de um apagão generalizado da máquina pública e sob o risco de falta de dinheiro para pagar aposentadorias.

Os problemas orçamentários, com impactos sobre o cotidiano da população, são o retrato de um desfecho dramático para o atual governo, que pode se ver obrigado a pegar carona na PEC (proposta de emenda à Constituição) do adversário ?o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT)? para furar mais uma vez o teto de gastos e conseguir pagar as contas.

Enquanto os sucessivos recordes na arrecadação proporcionam um celebrado superávit nas contas, o primeiro desde 2013, a necessidade de respeitar o limite de despesas obriga o governo a levar adiante um bloqueio de R$ 15,4 bilhões sobre recursos de ministérios e verbas carimbadas por parlamentares por meio das chamadas emendas de relator.

Como resultado, quase todos os recursos previstos para o mês de dezembro evaporaram. Só há R$ 2,4 bilhões para custear todas as despesas discricionárias dos órgãos, o que inclui compra de materiais e pagamento de contratos. Áreas como Saúde, Educação, Meio Ambiente e Justiça estão estranguladas, e algumas atividades estão sendo paralisadas.

Nem as despesas ditas obrigatórias escaparam do aperto. O governo ainda não sabe como vai conseguir pagar integralmente a folha de dezembro do INSS (Instituto Nacional de Seguro Social), pois não tem autorização do Congresso para cortar de vez as emendas de relator e remanejar os recursos para as aposentadorias. Esses benefícios tiveram crescimento significativo em 2022 após uma força-tarefa para reduzir a fila de requerimentos.

Uma consulta enviada pela Casa Civil ao TCU (Tribunal de Contas da União) pode abrir caminho à possibilidade de editar uma MP (medida provisória) de crédito extraordinário, que autoriza gastos fora do teto. Outra opção é incluir na PEC da Transição de Lula um dispositivo que permita a Bolsonaro exceder os limites de despesas ao fim de 2022.

A aprovação de PECs para driblar o teto de gastos converteu-se, no governo Bolsonaro, em uma espécie de instrumento de gestão fiscal. Sempre que havia forte pressão por mais despesas, uma nova autorização especial era negociada com o Congresso Nacional ?a mais recente delas partiu do próprio chefe do Executivo e lhe garantiu um cheque de R$ 41,2 bilhões para turbinar programas sociais às vésperas da eleição.

Em todo seu mandato, Bolsonaro gastou R$ 794,9 bilhões fora do teto, segundo levantamento do economista Bráulio Borges, do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), noticiado pela BBC News Brasil. O teto de gastos é uma regra constitucional que limita o crescimento das despesas à variação da inflação.

A qualidade das despesas extrateto, porém, tem sido questionada por especialistas e órgãos de controle, que veem mau uso da verba pública em políticas desfocalizadas. Uma evidência disso é que a ampliação das despesas não foi suficiente para impedir o quadro de paralisia em uma série de órgãos.

Na Saúde, o governo determinou um novo bloqueio de R$ 1,4 bilhão, elevando o total congelado para gastos a R$ 3,8 bilhões.

Os primeiros bloqueios haviam atingido principalmente as emendas de relator, destinadas, em geral, para fundos de saúde de municípios escolhidos por parlamentares. A nova trava, porém, recaiu sobre programas estratégicos.

Um dos atingidos foi o Farmácia Popular, programa que entrega à população medicamentos para doenças crônicas, como asma e diabetes, de forma gratuita ou com descontos. Foram R$ 194 milhões congelados.

Outros R$ R$ 224,6 milhões da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) foram bloqueados, comprometendo gastos para pesquisa e atendimentos, além da verba para a construção de fábricas de vacinas. Técnicos da Saúde temem que a medida dificulte ainda mais a execução de políticas públicas até o fim do ano.

No MEC (Ministério da Educação), o apagão de 2022 demonstra uma escalada no processo de esvaziamento orçamentário que marcou a atual gestão. A pasta tem R$ 466 milhões disponíveis para fazer empenhos (primeira fase do gasto, quando há a reserva do dinheiro para determinada ação) em todo o mês de dezembro, valor considerado baixo para uma pasta desse porte. O bloqueio total soma R$ 2,4 bilhões.

Na quinta-feira (1º), o governo ainda congelou todos os limites de pagamento da pasta em dezembro, medida que alcança a rede federal de ensino superior. Antes mesmo do bloqueio de dezembro, as consequências da falta de orçamento já eram visíveis em praticamente todas as áreas de atuação da pasta.

Por falta de dinheiro, houve atraso na contratação para produção e entrega de livros didáticos neste ano. Também houve o cancelamento da entrega de obras voltadas para a recuperação de aprendizagem.

Equipes técnicas tiveram de reciclar questões do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para garantir uma prova com itens inéditos, pois o governo não investiu na produção de questões novas.

Os cortes orçamentários no MEC também contribuíram para o desmonte do principal mecanismo de planejamento educacional e de transferência de recursos federais para educação básica, o PAR (Plano de Ações Articuladas).

Nesse sistema, as prefeituras cadastram suas demandas, e o governo federal realiza os repasses para apoiar a infraestrutura escolar, como construção de creches, compra de ônibus escolar e materiais.

Até 2 de dezembro de 2022, o governo pagou R$ 354 milhões por meio do PAR. É o menor valor em ao menos uma década. No ano passado, o valor havia sido de R$ 796 milhões ?já bastante reduzido em relação à média de R$ 2,5 bilhões anuais entre 2012 e 2018, em valores atualizados pela inflação.

O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, recebeu um indicativo de bloqueio de R$ 90 milhões, embora a Economia tenha informado uma trava menor, de R$ 76,4 milhões no fim de novembro. A maior parcela do corte incidiu sobre o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis).

Um ofício obtido pela Folha mostra que o órgão sequer tinha esse dinheiro em caixa no momento em que houve a determinação do bloqueio. Na prática, a pasta ficou totalmente sem verbas e ainda ficou com uma espécie de "saldo a bloquear", o que pode levar ao cancelamento de despesas já contratadas.

O presidente do Ibama, Eduardo Bim, que é aliado de Bolsonaro, alertou que a medida pode causar a "paralisação total" das atividades. Segundo ele, não haverá dinheiro para pagar contas de água, energia elétrica, vigilância e segurança, transporte de servidores, transporte de bens, gratificações, sistemas informatizados, trabalhos de ouvidoria, auditoria e corregedoria, serviços de telefonia e colaboradores terceirizados.

Bim afirma que o Ibama não terá condições de cumprir decisões judiciais por "total insuficiência de recursos", precisará cancelar viagens e pode passar toda sua operação para trabalho remoto ?o que, na prática, tende a inviabilizar ações de fiscalização num governo que já sustenta recordes históricos de queimadas e desmatamento, além do avanço do garimpo ilegal e da extração de madeira.

No Ministério da Justiça, a falta de verbas para a emissão de passaportes levou a PF (Polícia Federal) a suspender a confecção de novos passaportes no dia 19 de novembro. As atividades foram retomadas parcialmente após uma liberação de R$ 37,4 milhões ?metade da verba solicitada pelo órgão.

A situação delicada levou o grupo técnico da transição de Lula a pedir um reforço de R$ 200 milhões ainda este ano para pagar despesas, inclusive diárias de agentes da PF e da PRF (Polícia Rodoviária Federal). Há o temor de que a falta de dinheiro comprometa a organização da cerimônia de posse de Lula em 1º de janeiro.

A equipe de transição estuda alternativas, como a mobilização de policiais federais que estão concluindo o curso de formação na academia da corporação na capital do país, ou adiar o pagamento dos agentes que atuarem na posse para 2023

A PRF, por sua vez, informou às superintendências regionais que os serviços de manutenção não essenciais em viaturas não podem ser realizados sem uma aprovação prévia por falta de recursos.

A medida acontece por falta de verba, sendo que as tratativas da corporação com os ministérios da Justiça e da Economia ainda estão em curso para viabilizar a complementação orçamentária. O orçamento atual para manutenção da frota é de R$ 31 milhões, sendo que já foram executados R$ 38,9 milhões.