Pandemia, greve e mudança de legislação geraram estoque trilionário de processos no Carf

Por EDUARDO CUCOLO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A tentativa de evitar perdas bilionárias para a União em discussões tributárias acabou gerando um estoque trilionário de ações que aguardam julgamento no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).

O valor das causas em discussão no conselho cresceu mais de 60% nos últimos três anos e superou a marca de R$ 1 trilhão, embora o número de processos acumulados tenha caído em cerca de 20%.

Três fatores explicam essas mudanças, segundo advogados e o próprio governo. Em abril de 2020, entrou em vigor a regra que acabou com o voto de qualidade por um representante do Fisco nos casos que terminam empatados no conselho.

Na mesma época, por causa da pandemia, as sessões do Carf foram suspensas e, quando voltaram, o tribunal colocou um limite no valor dos casos que poderiam ser julgados de forma remota.

Como admitiu o próprio governo, a limitação teve como objetivo evitar decisão contrária ao Fisco em processo de grande valor, já que a União não poderia contar mais com o voto de qualidade.

O valor julgado pelo Carf despencou de uma média de R$ 428 bilhões em 2018 e 2019 para uma média anual de R$ 89 bilhões a partir de 2020.

As grandes causas só voltaram a ser julgadas em 2021. No ano seguinte, apareceu um terceiro fator: a paralisação dos funcionários da Receita. A média anual de casos analisados caiu de 32 mil de 2018 a 2021 para apenas 6.320 em 2022, segundo dados do Carf até outubro.

"Não se pode atribuir aos conselheiros egressos dos contribuintes a responsabilidade pelo estoque do Carf ou, ainda, pela morosidade, e até mesmo de forma injusta colocar em xeque a imparcialidade dos seus membros", diz a Aconcarf, associação dos representantes dos contribuintes no conselho.

Após a publicação da medida provisória que trouxe de volta o voto de qualidade pelo representante do governo, o Carf pautou uma série de julgamentos de alto valor e com casos controversos dentro do tribunal, que retoma as sessões em fevereiro.

Embora o desempate pró-contribuinte tenha sido utilizado em menos de 2% dos casos desde 2020, houve mudança de jurisprudência no órgão em temas relevantes, como tributação de lucros e empresas brasileiras que têm controladas no exterior e ágio na aquisição de participação societária --temas que voltam agora ao debate.

JABUTICABA

Ao anunciar a volta do voto de qualidade, o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, afirmou que nenhum país relevante tem uma estrutura com três instâncias para recursos administrativos contra autuações do Fisco.

Ele citou estudos que mostram que, de 28 países, a maior parte da OCDE, 81% têm apenas uma instância administrativa, e 19% têm duas. A maior parte desses tribunais tem como julgadores apenas pessoas da administração tributária.

As exceções são Dinamarca e Finlândia, que contam com representantes de contribuintes, mas que não são indicados por associações empresariais, como no Brasil. A Noruega tem representantes do setor privado, mas o Fisco local pode recorrer à Justiça em caso de derrota.

No Brasil, os contribuintes são representados por advogados indicados por confederações patronais ou de trabalhadores (em casos previdenciários), que precisam passar por uma seleção do próprio Carf, ficam proibidos de advogar e são remunerados pelo governo em sua função.

Segundo tributaristas, o Carf é um órgão técnico e a imparcialidade das decisões pode ser vista no alto percentual dos casos que terminam sem empate.

Roberto Justo, sócio do escritório Choaib, Paiva e Justo Advogados, concorda que o Carf é uma exceção no cenário internacional, mas vê o tribunal como necessário em um país com um sistema tributário complexo, um contencioso trilionário e com alto nível de disputa entre contribuintes e autoridade tributária.

Ele e o sócio Marcos Paiva afirmam que as análises de recursos nas Delegacias de Julgamento da Receita Federal são 99,9% contrárias aos contribuintes, enquanto o Carf tem um alto percentual de decisões em que Fisco e representantes do setor privado votam alinhados. "Precisa ter um órgão que vai julgar de maneira isenta", afirma Paiva.

O Carf foi criado em 2009 a partir da unificação dos conselhos de contribuintes, uma estrutura com quase 100 anos de funcionamento. Em 2015, foi alvo da Operação Zelotes da Polícia Federal, o que levou o governo a impor novas regras para a escolha dos seus membros.