AGU dá parecer favorável à lei que facilita lavagem de ouro ilegal
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A AGU (Advocacia-Geral da União) deu parecer favorável ao uso da chamada boa-fé para atestar a origem legal do ouro. A avaliação do órgão é que o instrumento é positivo, mas foi mal interpretado e mal utilizado.
A conclusão do órgão, datada de 27 de fevereiro, no entanto, causou estranhamento entre diferentes organismos preocupados com o combate ao garimpo ilegal.
Essa lei precisa cair porque é ineficaz, e o parecer da AGU é contraditório, para não dizer absurdo", diz Vera Motta, secretária nacional de Assunto Jurídicos do PV (Partido Verde), que acompanha ação contra a medida.
"Em vários momentos, a AGU concorda que é impossível que a legalização do ouro possa funcionar dessa maneira", acrescenta.
O parecer da AGU contradiz um posicionamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública feito praticamente um mês antes. Em 26 de janeiro, quando a crise humanitária dos yanomamis havia explodido, o titular da pasta, ministro Flávio Dino, criticou o instrumento numa entrevista no programa à Voz do Brasil, argumentando que a norma servia para legalizar o ouro clandestino e deveria ser considerada inconstitucional.
Na ocasião, também afirmou que havia solicitado formalmente ao advogado-geral da União, ministro Jorge Messias, para que avaliasse o tema em conjunto com a corte.
"O parecer da AGU é uma aberração, pois, não tem sentido dizer que a boa-fé tem um problema de interpretação", diz Sergio Leitão, diretor-executivo do Instituto Escolhas, um dos mais ativos no combate ao ouro ilegal. "Temos confiança de que o instrumento da boa-fé será revisto pelo governo por meio de outras iniciativas."
O parecer apresentado pela AGU foi interpretado por algumas pessoas que acompanham a discussão na Justiça como um posicionamento mais político do que jurídico, para tentar aliviar a responsabilidade do PT na criação da norma.
A boa-fé está prevista na lei federal 12.844, de 2013, de autoria do deputado Odair Cunha (PT-MG). Ele incluiu os artigos em uma MP (Medida Provisória) que tratava de seguro agrícola, sem nenhuma relação com ouro. Ou seja, como se diz no jargão do Congresso, colocou um jabuti na lei. O texto final foi sancionado pela ex-presidente Dilma Rousseff.
À Folha de S.Paulo, Cunha afirmou que sua proposta foi mal interpretada e que não imaginou que, com o passar do tempo, o instrumento pudesse evoluir para "esquentar" ouro ilegal, termo que se refere à transformação fraudulenta de um ouro de origem ilegal em legal.
Na prática, o uso da boa-fé é apontado como o principal mecanismo para regularizar o ouro extraído de terras indígenas e reservas ambientais. Ela exime os primeiros compradores do ouro, basicamente DTVMs (Distribuidoras de Valores Mobiliários), da obrigação de exigirem do vendedor que ele prove de onde o ouro foi extraído.
Depois que a sua autoria ganhou publicidade, o deputado Cunha enviou um ofício à ANM (Agência Nacional de Mineração) requerendo a suspensão imediata da 6ª Rodada do Edital de Disponibilidade de mais 420 áreas para exploração de lavra garimpeira. O ofício também pede auditoria completa nas autorizações já emitidas e do ouro vendido a partir de cada uma delas.
Segundo a Folha de S.Paulo apurou, numa reunião na AGU, alguns integrantes do órgão afirmaram que o parecer sobre a boa-fé precisava refletir o conjunto de interesses, muitas vezes contraditórios, de 164 diferentes órgãos públicos, e que nem todos consideram ideal acabar com a boa-fé, segundo relatos de quem acompanha a discussão.
Entre os que teriam apresentado oposição, estaria o BC (Banco Central). A autarquia, no entanto, publicamente se declara contra a permanência da boa-fé e afirma trabalhar para a construção de um novo arcabouço legal.
Procurada pela reportagem, a assessoria do BC reafirmou, em nota, que "conforme tem reiteradamente afirmado, o Banco Central apoia integralmente a revogação da presunção de legalidade na aquisição do ouro por instituição financeira."
O posicionamento da AGU foi uma resposta ao STF (Supremo Tribunal Federal) dentro de duas ADIs (Ação Direta de Inconstitucionalidade), que questionam a comercialização de ouro com base na presunção da boa-fé. Estão sob análise na corte a ADI 7273, do PSB (Partido Socialista Brasileiro) e do Rede Sustentabilidade, e a ADI 7345, apresentada pelo PV.
Para balizar a sua decisão sobre o tema, o relator da ação, o ministro Gilmar Mendes pediu informações para AGU, Banco Central, ANM e CVM (Comissão de Valores Mobiliários).
Em resposta à Folha de S.Paulo sobre a questão, a assessoria de imprensa da AGU destacou que o órgão cumpriu a sua função dentro dos parâmetros legais.
"A Constituição Federal, em seu artigo 103, parágrafo 3º, atribui à AGU o dever de defender todas as leis federais cuja constitucionalidade seja impugnada", afirma em nota enviada à reportagem. "A jurisprudência admite que a AGU se pronuncie pela inconstitucionalidade apenas quando há precedente do Supremo Tribunal Federal que entenda pela inconstitucionalidade da norma. Essa não era, contudo, a hipótese dos autos."
Diante do posicionamento considerado frustrante da AGU, as atenções dos defensores do fim da boa-fé agora se voltam para o movimento do governo federal. Está em elaboração uma MP que busca estabelecer novas regras para o garimpo. O texto em análise revoga a presunção da boa-fé.