Saque de R$ 26 bi do PIS/Pasep não é 'esforço fiscal' nem reduz rombo nas contas, segundo BC
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A medida que prevê um resgate, pelo Tesouro Nacional, de R$ 26 bilhões em recursos abandonados nas contas de trabalhadores no Fundo PIS/Pasep não representa "esforço fiscal" e, por isso, não serve para reduzir o rombo das contas em 2023, segundo entendimento do Banco Central -órgão responsável pelas estatísticas oficiais das finanças públicas brasileiras.
Na prática, isso significa que o déficit neste ano, projetado atualmente em R$ 107,6 bilhões pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), será maior aos olhos do BC. Considerando o cenário atual, o rombo passaria dos R$ 133 bilhões.
A inclusão dos R$ 26 bilhões nas estimativas para o ano anunciadas pelo Ministério do Planejamento e Orçamento na quarta-feira (22) tem chamado a atenção de economistas, uma vez que sinaliza uma aparente melhora que não vem de um esforço do governo para equilibrar as contas, nem representa uma medida estrutural.
A decisão, porém, está em sintonia com o objetivo da equipe econômica de indicar ao mercado financeiro que o déficit em 2023 não passará de 1% do PIB (Produto Interno Bruto), equivalente a cerca de R$ 100 bilhões, como prometido pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda).
O critério contábil usado pelo governo é considerado questionável por especialistas, embora ele tenha respaldo legal de uma emenda constitucional promulgada em 2022 que considera esses recursos fonte de receitas primárias. A avaliação é de que as manobras contribuem para mascarar uma fotografia muito pior em termos de déficit das contas públicas.
Na quarta-feira, o secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, disse que o governo está "seguindo o mandamento constitucional" e não pode "de modo algum" interferir no entendimento do BC. "O critério oficial é o do BC. Se houver discrepância, nada impede que isso seja rediscutido", afirmou.
Pivô da controvérsia, o Fundo PIS/Pasep foi criado em 1975, a partir da unificação de programas que buscavam constituir uma espécie de poupança privada para o trabalhador a partir do recolhimento de contribuições dos empregadores. Em 1988, a finalidade desses recursos foi alterada, mas os saldos acumulados até então foram mantidos nas contas.
Com o passar dos anos, boa parte dos recursos continuava parada, apesar das tentativas de flexibilizar as possibilidades de saque. Hoje, há R$ 26 bilhões disponíveis sem perspectiva de resgate, dado que muitos beneficiários já faleceram sem deixar herdeiros ou sem que a família tenha conhecimento do dinheiro.
A emenda constitucional 126, que ampliou o limite de gastos do governo em 2023, autorizou a União a se apropriar desses recursos, dando um prazo adicional de cinco anos para eventuais beneficiários reclamarem os valores.
O mesmo dispositivo previu que os recursos sacados deveriam ser "apropriados pelo Tesouro Nacional como receita primária" para bancar investimentos. A interpretação do trecho é de que o valor resgatado deve entrar na conta de resultado -portanto, reduzindo o déficit.
A discrepância estatística vem do fato de que os órgãos têm metodologias diferentes de apuração do resultado primário. O Tesouro faz o cálculo a partir da diferença entre receitas e despesas, conforme normas de contabilidade previstas na legislação.
Já o BC analisa a variação de estoques de passivos e ativos, ou seja, a situação da dívida pública, obedecendo a padrões internacionais. Dessa forma, evita-se que cada país aprove metodologias diferentes de aferição dos números, comprometendo comparações e análises.
Uma ala do governo entende que o dispositivo da emenda também vincularia o BC, interpretação que o órgão parece rejeitar.
À reportagem, o Banco Central informou que o resgate das contas PIS/Pasep, cujos depósitos estão parados há anos, representa uma "transferência de propriedade econômica de ativo financeiro do setor privado para o setor público em decorrência de legislação específica". Isso implica, segundo a instituição, uma reclassificação de ativos nas estatísticas fiscais.
"Dessa maneira, a operação não decorre de transação econômica ordinária entre o setor público e o setor privado, nem se relaciona ao resultado das operações públicas correntes", diz o BC em nota.
"De acordo com essas características econômicas, nos termos da metodologia das estatísticas fiscais, essa transação aumenta os ativos financeiros da União, mas não impacta o resultado primário, sendo considerada, do ponto de vista dos fluxos, como um ajuste patrimonial", afirma.
Assim, aos olhos do BC, o resgate dos valores no Fundo PIS/Pasep reduz apenas os indicadores da dívida pública, uma vez que há incorporação de um ativo ao patrimônio da União.
O Manual de Estatísticas Fiscais da instituição diz que "os ajustes [patrimoniais] são efetuados para retirar dos fluxos valores que não representam esforço fiscal despendido durante o período em análise".
Essa explicação tem relevância porque o governo está reduzindo o déficit com base no saque de valores acumulados ao longo de décadas.
Para efeito de comparação, quando diversos estados decidiram resgatar depósitos judiciais privados que estavam parados nos bancos, com o objetivo de melhorar seu caixa de forma temporária, isso não entrou na conta de resultado primário deles.
Numa situação contrária, quando a União é obrigada a reconhecer passivos acumulados no passado, esses valores entram na conta da dívida da União, mas não aprofundam o déficit. Daí a estranheza entre economistas e técnicos do próprio governo causada pelo dispositivo constitucional.
Esse grupo também critica o fato de a Constituição, norma fundamental do país, ser usada para dispor sobre questões tão particulares quanto a forma de contabilizar uma receita no Orçamento.
O economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e colunista da Folha de S.Paulo, afirma que o relatório bimestral divulgado na quarta-feira parece ter sido escrito para apresentar uma previsão de déficit primário de 1% do PIB, cumprindo a promessa da Fazenda de melhora nas contas.
"Porém, para chegar a esse número, o documento desconsiderou despesas já contratadas, fez estimativa otimista de receitas, superestimou o PIB em relação à mediana apurada pelo Relatório Focus e lançou mão de critério contábil questionável, ainda que por determinação de emenda constitucional", critica.
Além de incluir os R$ 26 bilhões do Fundo PIS/Pasep como fonte de receitas, o governo não contabilizou a perda de arrecadação de R$ 3,2 bilhões com a correção da tabela do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física), nem o gasto adicional de R$ 4,5 bilhões para bancar o reajuste extra do salário mínimo, para R$ 1.320 a partir de 1º de maio.
Há ainda outras pressões por vir pelo lado do gasto, como os repasses a estados e municípios para financiar o novo piso da enfermagem (estimado em R$ 16 bilhões) e para ressarci-los pelas perdas com a redução do ICMS sobre combustíveis e energia (cerca de R$ 13 bilhões).
Feitos esses ajustes, Mendes calcula que o déficit do governo, na verdade, seria de R$ 170,3 bilhões -58,3% acima do projetado pelos órgãos oficiais.
O Ministério da Fazenda já disse que pretende buscar compensações para as medidas do salário mínimo e da tabela do IRPF, cortando outras despesas e elevando receitas, mas as eventuais medidas ainda são desconhecidas.
A pasta também calcula que o acordo com os estados envolvendo o ICMS terá um impacto menor em 2023, de R$ 4 bilhões, mas o valor ainda não foi incorporado às estimativas do Orçamento.