Arcabouço ameaça Lula com restrição de gastos mais forte do que a prevista
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - As primeiras projeções sobre o efeito da nova regra fiscal nos gastos do governo indicam que o modelo apresentado pelo Ministério da Fazenda é complexo e com inúmeros desafios para ser posto em prática, sendo o principal deles a necessidade de se criar um novo conceito de receita para definir o quanto a despesa poderá subir.
Os cálculos de economistas, que apontam um arrocho maior do que o previsto, são feitos no momento em que o ministro Fernando Haddad (Fazenda) está sob pressão do PT. Integrantes do partido expressam preocupação com o efeito da proposta para o crescimento econômico, num momento em que a atividade está em desaceleração.
As simulações mostram que é crucial elevar a arrecadação para cumprir a proposta e também sinalizam que, se forem usados os conceitos atuais de receita pública, o segundo ano de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) corre o risco de ser marcado por uma restrição orçamentária mais forte do que a esperada pelo governo.
No mundo das finanças públicas, existem tipos diferentes de receita. Durante o anúncio oficial da nova regra, os representantes do Ministério da Fazenda disseram que o arcabouço adotaria um dos conceitos mais usados, a chamada receita primária líquida.
Ela inclui todas as receitas. As ordinárias, que são arrecadações tradicionais de tributos, e também as extraordinárias, que oscilam muito a cada exercício (como dividendos da Petrobras e pagamentos por concessões de infraestrutura à iniciativa privada, como aeroportos e rodovias).
Pelo que foi detalhado durante o anúncio da nova regra, o governo poderia gastar no ano um adicional que equivaleria a 70% do crescimento dessa receita líquida registrada nos 12 meses encerrados em junho do ano anterior.
Para que a expansão do gasto seja garantida, mas sem brecha para exageros, o desenho previsto mantém o princípio de um limite para gastos (existente na atual regra do teto), mas em formato mais flexível. O ritmo de alta das despesas em cada ano estará proporcionalmente ligado à variação das receitas, mas sempre em um intervalo de 0,6% e 2,5%.
Consultada pela reportagem, a Fazenda reforçou que vai manter como base de cálculo a receita primária líquida, nos 12 meses encerrados em junho, mas excluindo algumas receitas extraordinárias ?o que indica que um novo conceito para a receita está em elaboração.
A pasta afirmou ainda que o crescimento de despesas permitido no primeiro ano de aplicação da nova regra, 2024, ficará acima do piso de 0,6% previsto pelo arcabouço. Em declarações recentes, o secretário Rogério Ceron (Tesouro Nacional) afirmou que a despesa para o ano que vem cresceria 2,5% ?o máximo permitido pelo arcabouço proposto.
O PL (projeto de lei) com os parâmetros ainda não foi apresentado. Inicialmente, ele seguiria para o Congresso até sexta-feira (14), mas a apresentação ficou para a outra semana. Os economistas estão fazendo simulações com diferentes tipos de receitas e de prazos na tentativa de traçar cenários.
Entre os que se debruçaram sobre dados para traçar projeções preliminares está o economista Manoel Pires, coordenador do Núcleo de Política Econômica e do Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
Ele fez algumas simulações com a receita primária líquida e outras excluindo da conta os dividendos. O tipo de arrecadação e o prazo dão resultados muito diferentes.
O grande complicador é que as receitas primárias estão perdendo fôlego depois de uma grande alta em 2022, impulsionadas por ganhos extraordinários. Em janeiro, por exemplo, o crescimento real em comparação com o mesmo mês do ano anterior foi de 3%. Já em fevereiro, houve uma queda real de 17% no mesmo tipo de comparação.
Adotar a receita primária líquida nos 12 meses encerrados em junho de 2023, sem abater nenhuma receita extraordinária, abriria um espaço menor para os gastos.
Com a retirada dessas receitas extras, sairiam das planilhas os ganhos recordes obtidos em 2022 com a Petrobras (que tendem a não se repetir em 2023) ?ou seja, a retirada, nesse caso, fará a receita crescer a partir de um patamar menor, e portanto, a um ritmo mais forte. Para efeito do cálculo da regra, isso permitirá uma alta maior da despesa.
Sendo assim, a escolha de quais receitas extraordinárias serão excluídas do cálculo vai definir a expansão do gasto já no primeiro ano de aplicação da nova regra. Isso explica a atenção que a equipe econômica está dando a esse detalhe na reta final da apresentação do PL.
A equipe do banco Bradesco chegou, em suas análises preliminares, a uma conclusão similar sobre o efeito de alterar a definição das receitas.
"A apuração da receita recorrente pode ser uma possibilidade para aumentar o limite de gastos em 2024, eliminando receitas extraordinárias obtidas em 2022 e viabilizando uma base de cálculo mais favorável", diz o texto de relatório sobre o tema a que a Folha teve acesso, intitulado "Impressões sobre os primeiros parâmetros do novo arcabouço fiscal".
Esse expediente, no entanto, terá efeitos no longo prazo, destaca a equipe do banco.
"Ainda que, em um primeiro momento, isso aumente o espaço para gastos, a apuração da receita recorrente tornaria a regra mais rígida no futuro, reduzindo os incentivos para busca de receitas extraordinárias e pontuais com objetivo de aumento de despesa futura", destaca o relatório.
A equipe do Bradesco também chegou à conclusão que o primeiro ano de aplicação da nova regra tende a ser de aperto orçamentário, caso o governo não consiga elevar as receitas.
"Chamamos atenção para 2024", destaca o texto. "Consideramos, em todos os cenários, um crescimento real de 0,6% da despesa sujeita a limites, em virtude da queda real da receita líquida total apurada até junho deste ano, segundo nossas projeções. Trata-se de um ajuste importante, logo no primeiro ano da regra."
Os economistas dizem que excluir despesas extraordinárias pode ter o efeito de dar mais estabilidade e previsibilidade aos itens que serão considerados na nova regra. No entanto, por criarem um novo conceito de receita recorrente, o expediente pode abrir brechas para interpretações múltiplas e até para questionamentos no futuro.
Seja qual for o conceito adotado, a elevação da receita é um desafio permanente na proposta de nova regra fiscal, afirma Marcos Mendes, outro economista que avalia a proposta. Pesquisador associado do Insper e colunista da Folha, Mendes foi um dos formuladores da regra do teto.
"Estamos em uma equipe de seis pessoas trabalhando para entender a regra, mas, preliminarmente, já deu para ver que o modelo proposto tem crescimento de receita e de despesa, e você só fecha a conta subindo muito a receita", afirma ele.
"Isso ocorre porque, na hora em que sobe a receita para fechar a conta, você gera outras despesas."
O resultado preliminar do levantamento do grupo de Mendes aponta que, para ser alcançado o cenário para as contas públicas apresentado pela Fazenda, a receita líquida precisa sair de 18,1% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2023 para 20,8% em 2026. Trata-se de um aumento de 2,7 pontos percentuais em relação ao PIB, um avanço qualificado como "muitíssimo" elevado.
Traduzindo em valores monetários, significa que o governo Lula precisa conseguir R$ 67 bilhões neste ano e mais R$ 100 bilhões, ao ano, em 2024, 2025 e 2026.
Mendes lembra que, considerados outros ajustes feitos no lado da receita, o principal deles ocorreu entre 1997 e 2002. Naquela época, a equipe econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso puxou a receita para cima em um esforço para gerar resultado primário e salvar o Real.
Esse esforço fiscal resultou em um aumento médio anual de receita da ordem de 0,77 ponto percentual do PIB, lembra ele.
"Agora, estamos estimando um esforço de 0,88 ponto percentual do PIB por ano", afirma ele.
"É um esforço fiscal muito maior, com o detalhe de que, naquela época, a carga tributária era baixa, e houve espaço para elevar impostos e criar contribuições tributárias. Agora, a carga tributária equivale a 34% do PIB, e não tem de onde extrair receita excepcional para dar esse salto", diz Mendes.
Ele reforça que o governo vai precisar alcançar um crescimento real (acima da inflação) da receita de 3,6% em 2023 e de 5%, todos os anos, até 2026.
"Isso é uma paulada sobre qualquer métrica que se considere", diz Mendes. "Para cumprir as metas pré-anunciadas, o esforço de receita terá de ser brutal."