É preciso reinventar o capitalismo, diz economista Mariana Mazzucato

Por DOUGLAS GAVRAS

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Mariana Mazzucato, 55, não se surpreende ao ver o retorno de políticas de austeridade após a pandemia de Covid ou o aumento da popularidade de novos líderes ao redor do mundo que classificam o Estado como fonte de todos os problemas.

Para a economista italiana, antes de criticar os eleitores que escolhem políticos engajados em destruir o Estado, é preciso que as instituições públicas assumam um novo papel no século 21, fornecendo uma direção e exigindo que todos os setores da economia inovem.

Para se adequar às demandas atuais, é preciso reinventar o capitalismo, diz a professora, que esteve no Brasil na quarta-feira (27), para participar do 10º Congresso Internacional de Inovação da Indústria, realizado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) e o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).

Mazzucato tem se aproximado do Brasil. Uma das referências para os economistas do PT, em especial de gestores do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) --como Aloizio Mercadante e Nelson Barbosa--, ela participou de seminário da instituição em março.

Em julho, o Ministério da Gestão e a Enap (Escola Nacional de Administração Pública) assinaram acordo com o Instituto da Inovação e Propósito Público da University College London (IIPP/UCL), fundado por ela. O objetivo é a capacitação de servidores, além da inovação na administração pública.

Essa proximidade tem reforçado sua visão de que o país pode ser um ator de destaque.

PERGUNTA - O presidente Lula tem defendido no exterior o papel do Brasil como protagonista de um futuro de desenvolvimento sustentável. Como colocar suas palavras em ação?

MARIANA MAZZUCATO - A razão pela qual as pessoas estão ouvindo o que Lula tem a dizer é que não há líderes suficientes no mundo hoje que levem a sustentabilidade a sério --fala-se muito, mas muito pouco é feito.

Desde o primeiro dia, quando ele começou o novo governo, a questão da sustentabilidade e a Amazônia têm estado no centro, e o fato de o plano de transição ecológica brasileiro incluir o Ministério da Fazenda é algo radical.

Geralmente, o que acontece é a velha maneira de pensar, em que o Ministério do Meio Ambiente faz a política de sustentabilidade e o Ministério da Saúde se preocupa com o bem-estar.

Todo o governo deve estar voltado para um grande plano de economia verde?

M. M. - A chave é como as diferentes áreas trabalham juntas, porque cada ministério tem suas próprias metas ambientais.

Ter um banco público, como o BNDES, também é muito importante para o financiamento, mas é preciso impor condicionalidades de inovação para o financiamento.

O grande gargalo em países como o Brasil é que as empresas são fortes, mas muitas delas não estão inovando, há uma inércia.

Mesmo um setor consolidado, como a siderurgia, precisa inovar e transformar-se. A Alemanha hoje tem o aço mais verde do mundo, não por ter decidido que seria assim, mas por precisar ser verde para conseguir dinheiro do governo, é uma parceria simbiótica em vez de uma parceria parasitária.

O Brasil poderia, de fato, liderar um processo de inovação?

M. M. - Imagine pegar o orçamento de compras de cada ministério --Saúde, Transporte, Defesa, Energia-- e transformá-lo em um orçamento de inovação, orientado para programas de mobilidade sustentável, que tentem resolver os congestionamentos nas grandes cidades. Acho que o Brasil pode realmente liderar um movimento nesse sentido, especialmente porque o Ministério da Fazenda é parte disso.

Trata-se de reinventar o capitalismo, fazer tudo de uma forma diferente, estruturando as organizações públicas e deixando que as organizações privadas também sejam instadas a trabalhar em conjunto.

Para chegar à lua, lá atrás, foram mobilizadas pessoas de diferentes setores --de profissionais de nutrição ao setor de eletrônicos e aeronáutica-- e esse trabalho em conjunto solucionou muitos outros desafios pelo caminho.

Hoje temos câmeras, celulares, comida para bebê e softwares que são resultado dessas grandes mobilizações de recursos. O mesmo deveria acontecer com a agenda de sustentabilidade do Brasil, você a divide em diferentes frentes e as soluções para os problemas que surgirem ao longo do caminho podem fomentar muita inovação, é daí que vem o crescimento.

Deixar de ser um exportador principalmente de commodities é uma ambição ainda distante?

M. M. - No caso da América do Sul, é preciso ter muito cuidado, porque os novos recursos são muito atraentes, como o lítio para baterias elétricas.

Ele também traz muitos problemas, um deles é que a extração de lítio cria enormes quantidades de água poluída, por exemplo, então é preciso ter certeza de que a solução para um lugar não caus e um problema em outro.

Tenho aprendido muito com a Dinamarca, que hoje é um grande fornecedor de serviços verdes digitais de alta tecnologia, tendo criado um ecossistema de inovação. Não cabe a mim dizer ao Brasil o que fazer, mas a questão é que você não quer cair na armadilha das commodities novamente.

A falta de recursos é sempre um problema, sobretudo em países com problemas em diferentes áreas. Como contornar a limitação cada vez maior do Orçamento?

M. M. - Todos os países reclamam de falta de recursos. O erro é pensar que a restrição se dá pelo déficit, a restrição real é a dívida em relação ao PIB [Produto Interno Bruto]. Sem investir de forma inteligente, no setor privado e no setor público, a produtividade não aumenta e ela é o principal impulsionador.

Sou italiana, e depois da crise financeira, todos os países do sul da Europa [Portugal, Itália, Grécia e Espanha] foram forçados a reduzir os seus déficits, o que aconteceu foi que a dívida em relação ao PIB aumentou.

O que realmente importa não é ter um Estado grande ou pequeno, o que faz diferença é um investimento público inteligente, estratégico e orientado, que catalisa o investimento privado, mas para isso é preciso saber qual é a direção que está sendo tomada em relação ao bem-estar e à sustentabilidade, para depois redesenhar empréstimos, concessões e subsídios. Não basta distribuir dinheiro para as empresas.

E é claro que o dinheiro público só deve ser usado por aqueles que não conseguem obter o dinheiro privado, é preciso ajudar a promover um ecossistema competitivo inovador, em que pequenas e médias empresas estão dispostas a trabalhar em torno de temas, como saúde, clima, digitalização e a preservação da Amazônia.

Encontrar uma forma de construir um ecossistema simbiótico de público e privado é muito importante para qualquer governo progressista, como o brasileiro.

A popularidade de políticos extremistas ao redor do mundo, como no caso da Argentina, em que Javier Milei prega a destruição das instituições, não aponta que parte da população deixou de acreditar no Estado?

M. M. - Com certeza e, infelizmente, a onda de populismo está acontecendo por toda parte.

A Espanha pode ter escapado por pouco dela, mas vemos fenômenos assim na Itália e com o Brexit no Reino Unido.

Não deveríamos ser condescendentes e dizer que as pessoas são estúpidas por estarem votando nessas pessoas com ideologias malucas. Elas perderam a confiança no governo e nas empresas, por isso não é coincidência que muitos desses partidos populistas se apresentem como anarquistas.

Mas a realidade é que as ideias deles são muito antigas, é uma ideologia velha e, em alguns casos, até feudal, por isso é muito importante retirar a máscara de novidade que esses políticos "outsiders" usam.

Eles apresentam soluções simplistas e que olham para o sintoma, dizem que é preciso colocar mais pessoas na prisão ou que os imigrantes são a fonte dos problemas.

A teoria liberal, com menos Estado, também ganhou força nos últimos anos. Tivemos um exemplo disso no Brasil, durante o governo anterior, em que o ministro da Economia se orgulhava de defender as ideias da Escola de Chicago.

M. M. - Por se tratar de um centro acadêmico, era de se esperar que a Escola de Chicago se importaria com as evidências, e as evidências nos dizem que a austeridade não funciona nem para o planeta nem para as pessoas, por aumentar a pobreza.

A ideologia dos 'chicago boys' é uma economia estúpida e eles sabem disso, então, para ser honesta, cheguei à conclusão de que eles apenas não se importam. Por que mais alguém cortaria as refeições escolares ou a verba para centros juvenis e bibliotecas públicas?

A pandemia alterou a relação das pessoas com o Estado, mas essa mudança foi passageira?

M. M. - De repente, o Estado foi lembrado como o agente que proporcionou a vacinação, mas essa fase durou bem pouco, muitos países já estão passando por novas ondas de austeridade e dizem que gastou-se muito [durante a pandemia].

Os governos deram recursos para as famílias que não estavam trabalhando durante a quarentena e agora dizem "precisamos cortar programas sociais", só que as consequências desses cortes acabam custando mais.

A disputa dos países na aquisição das vacinas nos deveria ensinar que todos temos interesses diferentes e conflitantes.

Estou escrevendo um novo livro sobre esse tema --por exemplo, a água é um grande problema mundial e o ciclo global nos une a todos, o desmatamento na Amazônia causa uma seca do outro lado do mundo, então, em teoria, poderíamos pensar que o mundo todo está preocupado com a água de forma conjunta, mas isso não está acontecendo.

Salvar o planeta é o grande desafio para o Estado no século 21?

M. M. - O Estado tem de fornecer uma direção e exigir que todos os setores da economia inovem, pensando que o maior objetivo, claro, é a sustentabilidade, mas também a saúde e o bem-estar. É preciso estar preparado para a próxima pandemia.

O meu livro mais recente ["The Big Con"] é sobre como os governos precisam investir na capacidade de implementação de ações, sem investir no serviço público, você não saberá como agir e então ficará refém de consultorias, como ocorreu na crise de Covid.

O livro reforça como a indústria de consultorias infantilizou os governos.

RAIO-X

Mariana Mazzucato, 55

É professora de economia da inovação na UCL (University College London), onde é diretora fundadora do UCL Institute for Innovation and Public Purpose. É autora de quatro livros, incluindo "O Estado Empreendedor" e "Missão Economia"