Milei e fatiamento do Mercosul ameaçam conclusão do acordo, avaliam europeus
MADRI, ESPANHA (FOLHAPRESS) - Enquanto se especula no Brasil sobre a real intenção de Javier Milei em relação ao acordo da União Europeia e Mercosul, a mesma incerteza recai sobre a Comissão Europeia, que há duas décadas negocia o tratado, e sobre 305 eurodeputados que devem avaliar o texto, quando houver consenso sobre seus termos.
Segundo a deputada verde Ana Cavazzini, presidente da Comissão do Mercado Interno e da Proteção do Consumidor e vice-presidente Delegação para as Relações com o Brasil, a entrada de Milei na equação pode desestabilizar as conversas.
"A eleição do político libertário de direita Milei como Presidente da Argentina tornou menos provável uma conclusão rápida das negociações", disse ela à Folha de S.Paulo. "Afinal, já antes das eleições ele havia se manifestado a favor da saída da Argentina do bloco Mercosul."
A economista Diana Mondino, apontada como a ministra de Relações Exteriores no governo argentino, tem sido menos negativa que o próprio eleito, ao dizer recentemente que a Argentina deve permanecer no bloco e que o objetivo do governo Milei será modernizar o Mercosul.
Para uma fonte próxima aos eurodeputados verdes, a situação se complica à medida que se aproxima o final do ano, limite não oficial dado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, para o fim das negociações.
"Ficou mais complicado. Primeiro porque não sabemos nada sobre ele [Milei]. Segundo, tem sido muito crítico em relação a Lula e ao acordo. Por outro lado, [Mauricio] Macri apoiou Milei e Macri é a favor do acordo", disse, referindo-se ao presidente argentino entre 2015 e 2019.
Questionada, a Comissão Europeia afirmou que a data se mantém. "Esperamos concluir as negociações antes do final do ano, tal como anunciado pela Presidente von der Leyen durante o seu discurso no State of Union 2023".
Na ocasião, em 23 de setembro, a presidente disse o seguinte: "Devemos ter como objetivo concluir acordos com a Austrália, o México e o Mercosul até ao final deste ano. E logo depois com a Índia e a Indonésia. O comércio inteligente proporciona bons empregos e prosperidade."
As negociações sobre o acordo de cooperação entre os dois blocos haviam sido dadas por encerradas em 2019, durante o governo Bolsonaro, mas o texto não foi encaminhado para aprovação por causa da oposição de países europeus à política ambiental brasileira.
Desde então, a Europa discute como incluir nos termos do acordo salvaguardas que garantam que o Mercosul adota as mesmas práticas de sustentabilidade exigidas dentro da União Europeia.
O bloco europeu sugeriu um documento adicional, chamado pelo termo em inglês "side letter", que acrescenta condicionantes ambientais ao texto que havia sido negociado até 2019. Países do Mercosul, porém, fizeram contrapropostas a esse adendo. Apenas depois de resolvida essa questão a proposta de acordo voltará a tramitar nos dois blocos.
Na União Europeia, ela deverá ser aprovada pelo Conselho Europeu (que reúne chefes de governo dos países do bloco), pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais e regionais. No Mercosul, deverá ser aprovada pelos parlamentos nacionais. Para ser ratificado, o acordo terá que ser aprovado em todas essas instâncias.
O caso é que no começo de dezembro termina a presidência rotativa do Brasil na liderança do bloco. Após isso, a chefia passará ao Paraguai. "Não darei continuidade [às discussões] no próximo semestre", afirmou, em setembro, o presidente paraguaio, Santiago Peña.
Para tentar destravar o acordo, Von der Leyen e o presidente Lula (PT) vão se reunir em uma bilateral durante a COP28, que começa nesta quinta (30), em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, e vai até o dia 12 de dezembro.
Em relação a Milei, a Comissão se resumiu a lembrar as felicitações oficiais do chefe de relações exteriores da União Europeia, Josep Borrell. O novo governo da Argentina, que toma posse num contexto económico difícil, pode contar com a UE para reforçar ainda mais a nossa parceria, a fim de obter resultados positivos para as nossas sociedades, nomeadamente através da finalização, o mais rapidamente possível, das negociações sobre o Acordo de Associação UE-Mercosul", disse Borrell.
Paralelamente à correria, 305 eurodeputados, Anna Cavazzini entre eles, assinaram na semana passada uma carta aberta a Ursula von der Leyen na qual manifestam sua preocupação à possibilidade de a Comissão dividir o Mercosul em dois, deixando de lado a parte política e correndo para assinar o acordo comercial.
"Em primeiro lugar, separar as partes comerciais do seu quadro mais amplo de cooperação política contradizem o mandato de negociação da Comissão e constituem um sinal lamentável de que a UE prioriza seus interesses econômicos em detrimento da cooperação e parceria com os países do Mercosul. (...) Na verdade, a intenção subjacente ao início das negociações entre a UE e os países do Mercosul deveria ser uma cooperação mais estreita, não só do ponto de vista econômico, mas, o mais importante, politicamente", escreveram.
Um exemplo do que poderia acontecer, dizem eles, é que o acordo comercial não contém quaisquer referências aos direitos humanos. E a cláusula que permitiria a suspensão do acordo comercial em caso de problemas de violação de direitos humanos violações está contida na parte política e não na comercial.
"A política comercial da UE nunca deverá prejudicar os direitos humanos e dos trabalhadores, a proteção ambiental e o bem-estar dos animais e, nisso, o acordo falharia completamente", finalizaram.