Por que o setor de torcida mista para Grêmio e Inter chegou ao fim
PORTO ALEGRE, RS (UOL/FOLHAPRESS) - Torcedores rivais lado a lado em um clássico se mostrou uma combinação explosiva em Brasil e Argentina. A briga que atrasou o jogo das Eliminatórias para Copa do Mundo de 2026 marcou o duelo do Maracanã. Mas aficionados opostos dividindo arquibancada durante um dos maiores clássicos do país foi realidade entre 2015 e 2020 no Rio Grande do Sul, com raros momentos de confusão envolvendo apaixonados por Grêmio e Inter.
Inspirado nos jogos da Copa do Mundo de 2014 o espaço de torcida mista no Gre-Nal nasceu em 1º de março de 2015, por iniciativa de Alexandre Limeira, então vice-presidente de administração do Colorado.
"A gente vinha de uma Copa do Mundo, onde os torcedores conviveram de forma pacífica. Existia um ambiente para isso", contou ao UOL.
A ideia era mostrar que um clima de tolerância poderia contagiar o restante do estádio. A torcida mista ainda servia de 'isolamento' entre a torcida visitante e a local, posicionada no espaço entre elas. "Foi uma zona de paz, e a paz contaminou os outros setores", completou.
Era um espaço restrito do estádio dividido igualmente em que os torcedores possuíam vínculo afetivo: no Beira-Rio, sócios colorados convidavam gremistas para assistirem aos jogos na área mista, na Arena, sócios gremistas convidavam colorados.
"A torcida mista impediu a torcida única. Essa discussão de torcida única estava em pauta na época. Conseguimos mostrar uma mensagem de que não somos inimigos. Existem pontos que precisam ser atacados, como a segurança pública em ambientes de multidão, onde sempre há pessoas que trazem briga, insegurança, mas mostramos que não se pode generalizar. Foi um recado para a sociedade", disse Alexandre Limeira, ex-dirigente do Inter.
POR QUE ACABOU?
Foram 20 Gre-Nais com espaço de torcida mista com raros focos de confusão. No entanto, o espaço passou a ter pouca adesão dos torcedores.
Em 2020, duas razões foram dadas para interrupção do modelo: o regulamento da Conmebol nos clássicos da Libertadores e o baixo interesse do público. Por precisarem reservar espaço na área mista, os clubes deixavam de comercializar bilhetes e sobravam vazios na torcida.
O duelo que interrompeu a presença da torcida mista ocorreu março daquele ano e foi marcado por uma pancadaria entre jogadores de Inter e Grêmio. A batalha generalizada no empate por 0 a 0 pela competição continental evidenciou o ápice da hostilidade entre vermelhos e azuis.
Depois desse jogo veio a pandemia de covid-19 e a proibição de ter torcida nos estádios. A situação seria normalizada em fevereiro de 2022, mas a torcida mista deixou a pauta.
Curiosamente, o primeiro jogo em que ela não estaria lá, mesmo que fosse possível, foi marcado por mais um foco de violência: a pedrada no ônibus do Grêmio que feriu profissionais e ocasionou o adiamento do jogo pelo Gauchão.
"É importante dizer que a função da torcida mista foi cumprida. Ela tinha a função de mostrar que podemos conviver em paz em qualquer lugar, até mesmo num estádio de futebol. A lição foi passada, a mensagem dela foi dada e vive até hoje", disse Limeira.
Para o Promotor de Justiça Márcio Bressani, que trabalhava na promotoria do torcedor na época da torcida mista, faltou, principalmente, interesse dos clubes.
"Minha impressão é que houve desinteresse dos clubes. É necessário um acerto entre eles e o simbolismo também vem da reciprocidade. Um torcedor rival precisa ser atendido, bem cuidado no estádio do outro porque está em conjunto com os torcedores de casa. Isso demanda preparo, que do ponto de vista da cidadania vale muito a pena. É um simbolismo de pacificação. Mas muita gente entende que isso não é necessário. Cada vez mais as organizadas têm influência nos clubes e para muitos a civilidade não é bacana", disse Bressani.
Mas o que aconteceu em Brasil x Argentina não foi torcida mista. Limeira e Bressani concordam que a falha de segurança e o ambiente para tal iniciativa não remetem ao que ocorria nos clássicos gaúchos.
"O que houve no jogo da seleção não foi torcida mista, foi uma parte do estádio em que as pessoas não tinham relacionamento. No Gre-Nal era mil de cada lado, um convidava o outro, as pessoas tinham relação de amizade, parentesco, não tinham relação com organizadas. Ali eram pessoas que não se conheciam, as barras argentinas, e ainda mais vindo de um Fluminense e Boca Juniors na final da Libertadores marcado por conflitos de torcedores. Não era torcida mista, era descontrole de segurança", falou.
De todos os Gre-Nais com torcida mista, apenas um, em 2018, registrou um princípio de confusão reflexo de uma falha no controle de entrada de torcedores. O distúrbio, porém, logo foi contornado.
"O que vimos em Brasil e Argentina não foi torcida mista, foi torcida misturada, e isso é completamente diferente. As pessoas não têm noção da programação que precisa fazer para uma torcida mista funcionar. Não adianta simplesmente misturar sem nenhum cuidado, isso é um erro crasso de quem promove o espetáculo. E a responsabilidade pelas regras, leis, segurança do evento, é de quem organiza", disse Bressani.
PODERIA VOLTAR?
"Teria totais condições de voltar. Tenho dúvida é se há necessidade de fazer. A mensagem foi dada, a sociedade tem consciência disso. Tem espaço para fazer, mas talvez não tenha necessidade. O ensinamento já foi transferido", disse Limeira.
"Não tenho dúvida que é possível e é até necessário. Basta que os clubes queiram. Eu estou disponível para colaborar com a matéria, com a experiência que tivemos. Dá trabalho aos envolvidos? Claro que sim. Mas é muito gratificante", finalizou Bressani.