Meloni na Itália e Truss no Reino Unido esquentam debate sobre representatividade de gênero

Por MAYARA PAIXÃO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A provável ascensão de Giorgia Meloni ao cargo de primeira-ministra da Itália amplia a lista de importantes economias da Europa comandadas por mulheres, ainda que não inverta a balança de poder regional em termos de gênero. Ao menos 13 nações do continente têm mulheres como chefes de Estado ou de governo.

O ineditismo da ultradireitista italiana, porém, assim como a eleição de Liz Truss no Reino Unido 20 dias antes, deu-se sem que a campanha ou sua figura reivindicassem de forma central políticas de gênero.

Líder de uma sigla com raízes no fascismo, Meloni frisou o fato de ser uma mulher e mãe ao longo da campanha e falou sobre dificuldades para chegar a cargos altos, mas dispensa ser adjetivada como feminista e critica cotas para mulheres --se ela conseguiu, por que outras, afinal, não podem também?

A italiana já disse em entrevistas que não pretende interferir no direito ao aborto legal, mas enfatizar políticas de prevenção à interrupção voluntária da gravidez, o que é lido por ativistas como um caminho de dissuadir mulheres do procedimento.

Ao mesmo tempo, defende bandeiras, caso do conceito de família tradicional, distantes das reivindicações abraçadas por movimentos feministas nas últimas décadas. Como candidata, chegou a ser alvo de uma espécie de movimento "Ela, não", capitaneado por mulheres.

Com 99,9% das urnas apuradas, a coalizão de ultradireita que a italiana lidera obteve 43,79% dos votos -o que deve se reverter em 235 das 400 cadeiras da Câmara. Em segundo lugar, a chapa de centro-esquerda, liderada pelo Partido Democrático, aparece com 26,13% (80 assentos).

Truss, sucessora de Boris Johnson na liderança dos conservadores britânicos, já se definiu como feminista em entrevista à BBC há três anos -na época, era ministra da Mulher e da Igualdade. "Uma feminista Destiny's Child", disse ela, em alusão ao grupo musical americano dos anos 1990 que incluía, entre outras, Beyoncé.

Mas logo adendou: "O Partido Trabalhista gosta de tratar as mulheres como vítimas; eu acredito que as mulheres devem ser independentes". Quando comandou a pasta de igualdade ao mesmo tempo que era chanceler britânica, Truss chegou a ser acusada de marginalizar a agenda da igualdade pelo comitê de mulheres do Parlamento.

"A política europeia, embora tenha uma participação bem maior dar mulheres, continua sendo uma arena fundamentalmente dominada pelos homens; um campo conservador e patriarcal", avalia Carolina Pavese, doutora em relações internacionais pela London School of Economics.

Figuras como Truss, Meloni e mesmo Marine Le Pen, que disputou o segundo turno na França contra Emmanuel Macron, avalia, reforçam a discussão sobre o vínculo entre a representação política feminina e uma mudança estrutural na sociedade.

"As mulheres que conseguem ascender a cargos máximos muitas vezes não questionam a estrutura patriarcal e conservadora da política -ao contrário, flertam com essa estrutura."

Beatriz Rodriguez Sanchez, doutora em ciência política pela USP, pondera que não é só a dimensão numérica da representação de mulheres que é importante. "Há uma questão de justiça e de democracia, já que mulheres representam em média metade da população dos países. Mas a dimensão do conteúdo representado também é muito importante."

Nesse sentido, movimentos feministas questionam se a eleição de uma mulher pode significar avanços coletivos que vão além do simbólico -ainda que não venha acompanhada da defesa de mudanças mais profundas que permitam romper com empecilhos à participação feminina.

"Sob a ótica interseccional, por exemplo, uma plataforma feminista defende políticas que não são voltadas apenas para algumas mulheres, mas sim que promovam justiça social em termos de raça, classe, gênero e sexualidade", diz Sanchez.

O contexto regional também tem peso, afirma Pavese, que leciona na ESPM. "Na sociedade britânica, é inaceitável um discurso direto e contrário a essas pautas [de gênero]; no contexto italiano, de uma sociedade tradicionalmente muito conservadora, há espaço para discurso conservador declarado contra as minorias."

Em se tratando de contexto doméstico, Truss e Meloni engrossam uma lista que tem figuras como Mette Frederiksen, Sanna Marin e Katrín Jakobsdóttir, primeiras-ministras de Dinamarca, Finlândia e Islândia, respectivamente --nações nórdicas onde há um reconhecido Estado de bem-estar social forjado, entre outras coisas, na igualdade de gênero. Isso, aponta Pavese, irriga o cenário para a acensão de mulheres.

Há um mês, a finlandesa Marin se viu no centro de críticas, muitas delas com teor misógino, após o vazamento de fotos suas em festas. O episódio flerta com casos da violência política de gênero, afirma Sanchez. E figuras como Truss e Meloni, por óbvio, não estão excluídas da possibilidade de serem alvos dessa prática. "São críticas que ou têm a ver com o atributo pessoal, como ser fora daquilo que é considerado um padrão, ou de conduta sexual; de longe não são as mesmas que os homens sofrem."