Vitrines de lojas inexistentes são retrato da guerra em Moscou

Por IGOR GIELOW

MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) - Desde que deixou de ser uma loja de departamentos soviética e virou um símbolo da Rússia capitalista, nos anos 1990, o shopping GUM sempre exibiu reluzentes vitrines de marcas ocidentais frente a frente com o Kremlin, na Praça Vermelha.

Um visitante desatento, ao passear pelo coração de Moscou, pode até achar que nada mudou com o draconiano regime de sanções aplicadas pelo Ocidente ao país de Vladimir Putin após o presidente russo invadir a Ucrânia, há oito meses.

Seguem montadas as vitrines de estabelecimentos de ícones do luxo, como a francesa Louis Vuitton ou a italiana Gucci, empresas que deixaram de operar na Rússia como outras cerca de mil para não serem punidas por governos ocidentais.

A confusão se desfaz com uma entrada rápida no GUM. Algumas das lojas até preservam algumas peças no mostruário, mas a maioria está vazia. E todas, salvo uma ou outra marca que sobrevive por ter um investidor turco como dono na Rússia, têm em sua porta um anúncio em russo, inglês e chinês.

"Caros visitantes! Esta loja está temporariamente fechada por problemas técnicos. Pedimos desculpas por inconveniências temporárias", diz o texto. Assim, a pantomima de um shopping de luxo segue --com turistas, quase todos russos e chineses-- passeando em corredores brilhantes e inócuos. Fila, só na banquinha de sorvetes.

As "inconveniências temporárias" são mais explícitas em outro templo de consumo, o shopping subterrâneo Okhotni Riad, na saída da praça Vermelha. Ali, só há tapumes e fitas adesivas onde antes havia uma miríade de lojas ocidentais.

Já no Aviapark, um megacomplexo de compras na região nordeste da capital, o forte é a substituição: lojas de roupas basicamente mudaram os letreiros e vendem estoques, enquanto a produção é substituída por produtos locais. A mesma situação se dá lentamente nos onipresentes "produtki", as lojinhas de conveniência em que todo russo faz suas compras diárias.

Ainda é possível achar Coca-Cola, pois o último lote do concentrado do refrigerante chegou à Rússia em março, e a produção só foi finalizada em agosto, mas as prateleiras são dominadas por variantes locais. São imitações da Coca, da Sprite e da Fanta, em sua maioria. Uma garrafa de 600 ml custa em média 32 rublos (R$ 2,60), enquanto as originais saem por 83 rublos (R$ 6,80).

São pequenos lembretes que permeiam o cotidiano, já que por ora a previsão ocidental de hecatombe econômica russa não se concretizou: a contração do PIB deverá ser de 3%, não dos até 10% especulados no início da guerra, por cortesia da intensificação do comércio de hidrocarbonetos com países como China e Índia.

No elegante restaurante italiano de Micha, um empresário da região de Rostov com parentes na vizinha Ucrânia, há outros sinais. "As sanções após a anexação da Crimeia em 2014 já estavam absorvidas, e passamos a comprar queijos daqui. Agora, ainda é possível importar vinho italiano, mas ele custa até cinco vezes mais do que antes", afirmou, pedindo reserva sobre seu sobrenome.

A inflação de alimentos, de 14,2% em setembro, é o carro-chefe das agruras mais perceptíveis do conflito no cotidiano de quem não tem filhos na guerra. Segundo Micha, o movimento em seu restaurante caiu 40% de fevereiro para cá.

À mesa com outro amigo russo, ele descreveu à Folha o que considera uma normalização da guerra no cotidiano da capital. "No começo, ninguém deu muita bola, parecia que ia passar logo. Mas a guerra cresceu, todo mundo está horrorizado com essa violência. Não discuto quem está certo, sempre votei no Putin, mas conhecidos meus já morreram do outro lado", afirma.

"A TV estatal alterna momentos em que estamos vencendo e outros em que o Ocidente nos desafia e tal. Putin sempre diz que as sanções são duras, mas que tudo vai dar certo. Nesse vaivém, tocamos nossa vida. Mas é angustiante", completa Sacha, o outro comensal que também não quer ser identificado.

Ambos, contudo, concordam que a capital vive uma ilusão. Com efeito, a cidade parece ainda mais limpa e organizada do que estava na primeira semana da guerra, quando a Folha estava em Moscou, e os pequenos LEDs pendurados para efeito cênico na central rua Nikolskaia desde a Copa de 2018 seguem lá --ausente está a festa, talvez de forma permanente.

Não há a fanfarra patriótica que se poderia presumir: aqui e ali, cartazes na rua enaltecem os "Heróis da Rússia", militares mortos na Ucrânia. Mas são raros. As faixas com o Z que simboliza a campanha desapareceram.

O fim da mobilização de 300 mil reservistas para a guerra, na sexta retrasada (29), ajudou o Kremlin. Houve protestos em diversas cidades, e só o Cazaquistão recebeu 200 mil russos fugitivos.

"Todo mundo ficou com medo de ser chamado, e não sei se o risco passou de vez. Mas quando anunciaram que a convocação ia acabar, houve um relaxamento geral", afirma o analista político Sacha, que tem 48 anos e, por ter sido oficial do Exército, era elegível.

Em relação à informação para a classe média menos robotizada pela uniformidade da TV estatal, canais da rede social Telegram são a saída --o WhatsApp, menos popular de todo modo, tem acesso restringido.

Quem consegue obter serviços de VPN, algo mais difícil porque a maioria das empresas só recebe por cartões internacionais, inclui a visão ocidental na sua realidade. "Aqui é tudo propaganda, mas vocês no Ocidente também só fazem o mesmo", diz Sacha, um opositor da guerra.

Turista também é afetado A vida do turista é complicada. Primeiro, sobraram 30 opções de empresas aéreas que voam para o país --a mais prolífica é a Turkish Airlines, com 1.300 voos mensais, mais que o triplo da segunda colocada, a Uzbekistan Airlines. As restantes percorrem rotas residuais, o que fez o preço da passagem subir mais de três vezes em trechos concorridos, como Dubai-Moscou.

Uma vez a bordo, é preciso se acostumar com os desvios da região da guerra e do sul da Rússia, com espaço aéreo fechado. De Dubai, por exemplo, o voo ganhou uma hora a mais, levando quase seis horas devido a um desvio que obriga o avião a contornar o mar Cáspio no Cazaquistão.

Os aeroportos estão à meia carga. Em um dos internacionais de Moscou, o Vnukovo, uma frota de aeronaves 737 MAX da empresa Pobeda está inerte no canto do pátio, e aviões sem pintura alguma, trazidos de depósitos para substituir outros sem peças de reposição devido às sanções, surgem no terminal.

Ao chegar em um domingo, como ocorreu com a reportagem, há um problema prosaico: não é possível trocar dinheiro no aeroporto (no caso, o de Vnukovo, um dos três internacionais de Moscou). As casas de câmbio fecharam, e a única alternativa, uma agência bancária, só abriria na segunda.

Nada de mais se fosse possível usar cartão de crédito internacional, o que não é devido às sanções. O caminho inverso é o mesmo para os russos que conseguem sair do país, como o casal Ivan e Natacha, que veio de Dubai no mesmo voo que a Folha. "Tivemos de levar dólares, muitos dólares", riu o jovem engenheiro.

Eles ficam sérios quando o tema é a guerra, contudo. "É uma tragédia. Nossa vida nunca vai voltar a ser a mesma", afirmou Natacha, que trabalha numa agência de empregos. Uma vez em terra, mais problemas triviais: não é possível pedir um táxi pelo Iandex, o Uber local, já que ele agora só aceita contato por números de telefone russos.

Aos poucos, a situação fica algo kafkiana, resolvida ao melhor modo argentino: o escambo direto de dólares por rublos com um compadecido funcionário do hotel do aeroporto, devidamente disfarçado à guisa de uma negociação por um quarto.

"Era assim quando eu trabalhava na Intourist", disse o homem de 60 e poucos anos, em referência à antiga estatal soviética de hotelaria e turismo. Como nas vitrines do GUM, a antiga bandeira internacional do hotel não foi removida, apesar de a rede ter saído da Rússia, alimentando a estranha ausência da guerra na capital de Putin.