Personagens de documentário brasileiro escancaram dia a dia sangrento da Guerra da Ucrânia

Por JOÃO BATISTA NATALI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Butcha é o nome de um vilarejo ucraniano, pertinho da capital, Kiev, e que entrou para a história remota da região por um tratado de paz de 1617, entre o Império Otomano e a Comunidade da Polônia e da Lituânia. Pois bem, o lugar recentemente voltou à história, desta vez por motivos menos honrosos.

Mísseis disparados pelos russos mataram boa parte dos moradores. Ao lado da igreja, os sobreviventes encontraram nas primeiras semanas da guerra uma vala comum para 300 cadáveres. Uma freira, que se abrigou no subterrâneo de seu convento, recorda, ainda em estado de choque, "o inferno" representado pelo espoucar sucessivo de bombas lançadas pelos militares de Vladimir Putin.

O episódio está no documentário "Abrigo, Inocentes sob Ataque", em que o cineasta brasileiro Gabriel Chaim registrou uma coletânea de tragédias individuais da Ucrânia. O trabalho vai ao ar na GloboNews neste domingo (11), às 23h, e estará em seguida disponível na Globoplay.

O olhar de Chaim mira dois alvos simultâneos. De um lado, exemplifica com personagens corriqueiros o dia a dia sangrento de uma guerra em pleno século 21; de outro, constrói uma prova inequívoca de que a Rússia despreza convenções internacionais e despeja morte e destruição sobre a população civil.

Não é só contra o Exército ucraniano que militares de Moscou combatem. Estão também empenhados em destruir crianças, mulheres e não combatentes daquele país do Leste Europeu.

O documentário não se dedica a nenhuma preleção histórica desnecessária. Traz, por exemplo, um velho ucraniano que relata a perda de sua casa e o fato de não ter um teto para dormir. Sua dor satura de realismo e tristeza a narrativa do sofrimento.

Há ainda a mulher idosa cujo marido foi preso por uma patrulha russa. Os militares revistaram o celular dele e acreditaram ter encontrado mapas de interesse militar. Pois o cidadão foi amarrado e atirado a um lago com temperatura próxima do congelamento. O corpo reapareceu só três dias depois.

Um garoto de pouco mais de três anos olha para a câmera e constata, assustado: "Caiu um míssil!" Sua mãe o segura no colo e diz que a história não terminou mal porque soldados locais escoltaram a família até um abrigo.

Aliás, os abrigos, que constam do título do documentário, são um equipamento urbano recorrente. Durante o período soviético, quando Rússia e Ucrânia preservavam uma unidade política, o bom abrigo era sempre aquele que protegia de um ataque nuclear. Hoje, a utilidade é outra.

O funcionário de um hospital descreve com certo orgulho as portas blindadas de um recinto subterrâneo que a extinta União Soviética construiu para hospedar provisoriamente civis mortos. Ele também mostra uma sala em que uma dezena de caixões encostados numa parede estão à espera de sepultamento.

A morte ganha por vezes conotação escatológica. É o caso de uma mulher de pouco mais de 60 anos que descreve a explosão de uma bomba que matou e despedaçou o corpo da mãe. Ela fecha os olhos para revisitar a cena com a memória. Sua filha dá a entender que precisou despejar vodca na avó defunta, para conter o cheiro que ela exalava.

Irpin era uma cidade ucraniana de 65 mil habitantes. Hoje tem menos de 4.000. As pessoas se refugiaram em outras regiões ou em solo estrangeiro depois da chegada dos bombardeios. Uma das remanescentes tem 67 anos e não foi embora para ficar próxima ao filho, oficial do Exército ucraniano. Sua filha leciona na Bélgica e a pressiona com insistência para que ela se afaste do país.

O olhar astuto de Chaim também o levou a entrevistar duas mulheres que haviam acabado de dar à luz dentro de abrigos improvisados em maternidades. As duas jovens mães se referem à guerra e às condições excepcionais de seus partos como se fossem detalhes secundários. O importante para elas são as crianças que nasceram --é tão imenso o afeto em que estão mergulhadas que o carinho que demonstram é maior que a ameaça existente, lá fora, com os militares russos.

O documentário tem momentos de ternura, como o episódio que envolve Serguei. Ele sofreu os efeitos das bombas russas na cidade de Mariupol e decidiu se refugiar em Kiev, a 600 quilômetros de distância. Mas não viajava sozinho; levava consigo Darina, uma cadela que adotou ainda pequena.

Como no trajeto inicial os motoristas que lhe dariam carona não permitiam o embarque da cadela, Serguei percorreu a pé o longo começo da viagem. Sentiu-se aliviado quando Darina conseguiu entrar com ele num trem de refugiados. A propósito, o documentário revela que, devido à guerra, 1 milhão de gatos e cachorros foram abandonados na Ucrânia. Uma ONG alemã conseguiu encontrar um novo lar para 1.650 desses bichos domésticos.

ABRIGO - INOCENTES SOB ATAQUE

Quando: Neste domingo (11), às 23h, na GloboNews; depois, disponível na Globoplay

Direção: Gabriel Chaim