Republicano radicaliza discurso para tentar garantir presidência da Câmara
WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - O novo Congresso que toma posse em 2023 promete complicar a vida do Executivo, combatendo o que acredita ser doutrinação nas escolas e o que chama de "ideologia de gênero", ameaçando apurar a permissividade com o crime organizado e fazendo críticas a supostos planos de restringir a liberdade de expressão nas redes sociais em conluio com as big techs.
Poderia ser o Brasil, mas essas são indicações dadas pelo deputado americano Kevin McCarthy, republicano da Califórnia, caso seja eleito presidente da Câmara dos Representantes em janeiro -como tudo indica que será.
Para chegar lá, ele tem radicalizado o discurso em nome de conquistar as alas mais conservadoras da própria legenda, abrindo uma crise com os mais moderados que, no limite, pode até lhe tirar o cargo.
O Partido Republicano obteve maioria na Câmara nas eleições de novembro e retomará o controle da Casa a partir de janeiro. Mas a vitória, que garantiu 222 das 435 cadeiras, foi mais apertada do que o previsto --são só quatro assentos além dos 218 necessários.
McCarthy, 57, é hoje o líder da legenda, o que, em situações normais, garantiria a ele a presidência da Câmara a partir de 3 de janeiro, quando o novo Congresso toma posse. Mas o estado de ânimos da política americana tem dificultado o alcance de consensos, sobretudo entre os republicanos, divididos entre radicais devotos de Donald Trump e quem defenda deixar o ex-presidente para trás.
Nascido na Califórnia, o deputado foi eleito pela primeira vez em 2006 e rapidamente galgou espaço na política interna da legenda. No começo da carreira era tido como representante da ala jovem moderada, os "young guns" (armas jovens), e chegou a lançar um livro com esse título clamando por mais consenso bipartidário para avançar pautas importantes para o país.
No governo Trump, porém, foi se aproximando da agenda conservadora e se transformou em forte aliado do presidente. Dias após a eleição de 2020, ainda durante a apuração, chegou a dizer à Fox News que o republicano havia vencido, antes de o resultado oficial apontar o democrata Joe Biden como vencedor.
A maré virou na sequência da invasão do Capitólio, quando uma multidão insuflada por Trump tentou impedir à força a confirmação da vitória de Biden. McCarthy se voltou contra o então presidente e, em conversas privadas que vazaram à imprensa, chegou a pedir sua renúncia. Esse é um dos principais motivos para a bancada radicalizada do partido temer que ele não seja fiel aos ideais trumpistas.
Habilidoso politicamente, porém, o líder soube ler o cenário e se reaproximou do ex-presidente, inclusive jogando na fogueira seu antigo braço direito, Liz Cheney -que votou pelo impeachment do republicano e integra a comissão que investiga o 6 de Janeiro.
Mas agora, como precisa de 218 votos para ser eleito presidente da Casa e os republicanos serão 222, ele tem margem mínima de dissenso. Estimativas da imprensa americana apontam que lhe faltam cinco apoios, e recentemente ele passou por um susto: na eleição da liderança republicana na Câmara, Andy Biggs o desafiou e, ainda que não tenha ameaçado a vitória, conquistou 31 votos -o eleito teve 188.
Segundo o grupo do deputado do Arizona, há cerca de 20 republicanos contrários a uma presidência McCarthy, o que fatalmente o tiraria da disputa, considerando que democratas não devem votar nele.
Por isso, McCarthy tem cortejado o Freedom Caucus (bancada da liberdade), grupo de cerca de 40 parlamentares ultraconservadores e próximos de Trump. Um dos acenos mais simbólicos foi feito em uma visita ao Texas no fim de novembro; na fronteira com México, ele disse que abriria apurações contra o secretário de Segurança Interna, Alejandro Mayorkas. É um antigo pleito do grupo radical, insatisfeito com as políticas migratórias do governo Biden.
"Se Mayorkas não renunciar, os republicanos da Câmara investigarão cada ordem, cada ação e cada falha para determinar se podemos iniciar investigações de impeachment", disse, em El Paso.
Na última semana, ele divulgou a lista de prioridades das apurações que promete abrir, e no topo da lista está a que mira Mayorkas. Entre os motivos, ele inclui desde o impacto do tráfico de drogas na região até o que afirma serem "falsas alegações de que policiais 'chicotearam' imigrantes em Del Rio". Em setembro do ano passado, imagens de agentes de fronteira a cavalo, com as rédeas na mão, perseguindo imigrantes haitianos rodaram o mundo e abriram uma crise no governo --a Casa Branca condenou a ação.
Mas a lista de investigações que ele promete patrocinar se estende: vai da influência da China nos EUA e as origens do coronavírus à caótica retirada de tropas americanas do Afeganistão e um dos filhos do presidente, Hunter Biden. Também empresas de tecnologia que, "em coordenação e conluio com o governo e oficiais de inteligência", pretendem "silenciar a liberdade de expressão". E o que ele chama de doutrinação nas escolas.
McCarthy já disse que salas de aula "se tornaram um campo de batalha no qual ideologias políticas concorrentes, teorias de gênero e ciência lixo estão em guerra contra o bem-estar das crianças", citando "políticas prejudiciais promovidas por sindicatos de professores de ultraesquerda" que "envenenam as mentes das crianças".
O acenos à base radicalizada, porém, têm incomodado parlamentares moderados, e fala-se até em um acordo com democratas para tentar eleger um republicano centrista -a empreitada, porém, demandaria chegar a algo próximo da unanimidade entre os 213 deputados do partido de Biden para se juntarem a 20 republicanos dissidentes de forma a alcançar 218 apoios.
Também existe a possibilidade de desafetos não comparecerem à votação. Como o número de votos necessários está ligado à maioria dos presentes, se houver 426 dos 435 deputados, a maioria exigida passa a ser de 213, justamente o número do Partido Democrata. Isso permitiria que Hakeem Jeffries, recém-indicado à liderança da legenda, fosse eleito --é improvável, no entanto, que os republicanos abram mão da presidência.
A falta de consenso na escolha do líder da Casa trava a pauta na Câmara, e os deputados precisam votar quantas vezes for necessário até que o presidente seja escolhido. A última vez que um impasse grande aconteceu foi há cem anos, em 1923, quando a eleição de um republicano demandou nove votações. Em 1849, foram 60 rodadas até o consenso e em 1856 a Câmara parou por dois meses porque ninguém conseguia maioria.