Livros narram miséria social em grandes crises da história dos Estados Unidos

Por PAULA SPERB

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Subitamente, o dia virava noite. As tempestades de poeira cobriam o céu. Nem os olhos podiam ficar abertos com a mistura de vento e areia. Testemunhas do que foi uma das piores crises --social, econômica e ambiental-- da história dos Estados Unidos chamavam o acontecimento de "meia-noite sem estrelas".

A escuridão diurna era uma das inúmeras dificuldades que se impunham aos americanos do chamado Dust Bowl, região da bacia de poeira, na década de 1930, que constituía uma área oval formada principalmente por partes dos estados de Oklahoma, Kansas, Colorado, Novo México e Texas.

Fome, seca, pragas e uma terra que tornou-se impossível de ser cultivada afetaram direta e indiretamente milhões de americanos. Tudo isso em meio à Grande Depressão, recessão sem precedentes causada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.

Com as casas invadidas por areia em cada fresta, pulmões prejudicados pela poeira, sem alimento e trabalho, milhares de famílias migraram rumo ao oeste dos EUA, buscando oportunidade de trabalho na colheita de frutas na Califórnia.

Esse contexto histórico é pano de fundo de dois lançamentos editoriais no Brasil. O primeiro é "Dias de Areia", de Aimée de Jongh (Nemo, 2022), uma novela gráfica que mostra os efeitos do Dust Bowl em uma região de Oklahoma que ficou conhecida como "No Man's Land" (algo como "terra sem ninguém").

Na história em quadrinhos, o protagonista é um fotógrafo enviado pelo governo para registrar o fenômeno. A partir das fotografias que revelavam a miséria de sua população, o governo de Franklin Roosevelt estabeleceu políticas públicas para amenizar a crise. O projeto de fotografar o Dust Bowl realmente aconteceu. "Dias de Areia" é uma obra de ficção com caráter histórico, ou seja, os personagens são ficcionais e o contexto baseado em fatos da época.

O segundo é um clássico da literatura americana que ganha nova edição no país com projeto gráfico à altura da grandeza da obra. Trata-se de "Vinhas da Ira", de John Steinbeck (Record, 2022).

No romance, a família Joad é expulsa de suas terras agora improdutivas e tomadas por um banco. Sem perspectivas e iludidos por um panfleto que convocava trabalhadores rurais, eles deixam Oklahoma rumo à Califórnia para trabalhar nas colheitas.

Steinbeck narra essa saga com o primor que lhe garantiu tanto o prêmio Pulitzer, em 1940, como o Nobel, em 1960 --a obra foi publicada originalmente em 1939, dez anos após a quebra da Bolsa de Valores e ainda na esteira dos efeitos do Dust Bowl.

É como se "Dias de Areia" fosse um prólogo para "Vinhas da Ira", mostrando a devastação das planícies do Dust Bowl por meio de fotografias da época e planos belamente desenhados por Jongh, que viajou por Oklahoma em busca de referências.

Por sua vez, "Vinhas da Ira" relata todos os percalços da migração, feita com centavos contados para a gasolina e em condições precárias de salubridade em acampamentos próximos da estrada.

Em "Dias de Areia", John Clark é um fotojornalista nova-iorquino que vai a Washington para uma entrevista de emprego. Lá, é contratado pela Farm Security Administration (FSA), órgão federal criado nos anos 1930 por Franklin Roosevelt para combater a pobreza rural. Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, Roosevelt implantou o chamado New Deal, um pacote de intervenção estatal para mitigar a miséria da maior crise capitalista da história.

A FSA de fato contratava fotojornalistas, tanto para documentar e planejar políticas públicas como para informar os americanos. As imagens foram publicadas na imprensa, como na revista Life e também inspiraram John Steinbeck.

"Mostrar aos outros americanos o que acontece no campo. Uma imagem vale mais do que mil palavras... Não é verdade", John escutou do coordenador do projeto antes de sair em sua missão. Ao questionar a causa das tempestades de poeira, o fotógrafo recebe a seguinte resposta de uma funcionária da FSA: "Eles mesmos são as causas".

Além da seca e do vento, fenômenos naturais, havia responsabilidade humana. Formado sobretudo por planícies de vegetação rasteira, o Dust Bowl sofreu com as sucessivas colheitas que enfraqueciam o solo. Para aumentar a produtividade, tratores retiravam toda a vegetação, que antes segurava a terra. Sem colheita, os agricultores se viram endividados e muitos perderam suas propriedades para bancos. Mesmo aqueles que eram proprietários acabavam abandonando as casas em busca de trabalho na Califórnia.

Tanto "Dias de Areia" como as fotografias da FSA dão conta de mostrar as casas abandonadas, com os interiores repletos de papel de jornal forrando as paredes para cobrir as frestas. Outras imagens mostram galpões completamente soterrados pela poeira e famílias desoladas prontas para pegar a estrada.

Era pela Rota 66 que os "okies" --termo pejorativo usado para se referir aos migrantes de Oklahoma na Califórnia-- viajavam cerca de 3.000 km para o Oeste em busca de trabalho. A família Joad, de "Vinhas da Ira", parte com mais de dez pessoas, um cachorro, colchões, roupas e panelas em uma camionete. Nem todos eles chegarão ao destino final.

A FSA conseguiu registrar diversas mudanças em andamento nos estados do Dust Bowl. "Carros cheios, caravanas de gente sem lar e esfomeados; 20 mil, 50 mil, 100 mil, 200 mil despencavam das montanhas, famintos e inquietos --inquietos como formigas, famintos de trabalho. [...] Nossos filhos têm fome", escreveu Steinbeck.

Os milhares que migraram para a Califórnia ainda se depararam com o excesso de mão de obra que derrubava brutalmente os salários. Além disso, trabalhadores que se organizavam em sindicatos em busca de melhores condições eram perseguidos e imediatamente substituídos por outros famintos. Steinbeck narra o desencanto dos migrantes que sonhavam com os pomares e vinhas do Oeste.

O Dust Bowl terminou em 1939, quando retornaram as chuvas depois de cerca de uma década de estiagem. Mas não fora somente a seca e a poeira que castigaram os agricultores. No mesmo período, pragas como gafanhotos e lebres acabaram com o pouco que restava.

"Se tivesse que descrever minha estada no Dust Bowl", diz o personagem fotógrafo, e continua: "Eu falaria da dor lancinante quando o vento poeirento açoitava minha pele. Eu diria até que ponto se tem a impressão de sufocar a cada inspiração, por causa da poeira. Eu contaria como a alma humana se erode pouco a pouco depois de dias de areia. Nada disso pode ser captado por uma câmera".

DIAS DE AREIA

Preço: R$ 84,90 (288 págs.)

Autor: Aimee de Jongh

Editora: Nemo

VINHAS DA IRA

Preço: R$ 69,90 (560 págs.)

Autor: John Steinbeck

Editora: Record