Diva da música libanesa rompe silêncio no mundo árabe e se nega a cantar na Arábia Saudita

Por DIOGO BERCITO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em árabe, a palavra para "não" é "la".

Foi o que disse a diva libanesa Fairuz, 87, ao regime da Arábia Saudita, ao recusar o convite para cantar na festa de Réveillon deste ano -um sonoro e simbólico "la".

Fairuz, a principal voz da música árabe, estava cotada para o evento Trio Night, em Riad. A lista de convidados cintilava como uma constelação, incluindo nomes como Nancy Ajram (da canção "Ibn El Giran") e Najwa Karam ("Law Habaytek").

O objetivo do show, para além do entretenimento, era claro para quem acompanha essa região. Tratava-se de mais uma tentativa do príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman de reabilitar seu país, após tantos anos de violações aos direitos humanos.

É nesse contexto que a recusa de Fairuz teve tanto impacto no mundo de fala árabe. Não era apenas uma rejeição ao evento, que vinha acompanhado de um cachê milionário. Era uma negativa também de todo o projeto político do príncipe.

Nascida em Beirute, Fairuz tem uma importância cultural quase intraduzível. A palavra "diva", que costuma acompanhar seu nome como se fosse um título, não dá conta de expressar o que alguém que cresceu imerso nessa cultura sente ao ouvir a voz de Fairuz de manhã -momento do dia associado a ela- enquanto passa o café.

Fairuz começou sua carreira nos anos 1940, quando era adolescente. O Líbano, assim como seus vizinhos, penava para construir sua identidade depois do colapso do Império Otomano e da ocupação francesa, que só terminou oficialmente em 1945.

Nos anos 1950, a cantora se consolidou no Líbano e em toda a região de fala árabe com uma voz de potências e nuances. Em 1957, apresentou-se no lendário festival de Baalbeck, no leste do país, em meio a ruínas romanas. Já era àquela altura indispensável.

Tamanha era sua fama, inclusive entre a diáspora libanesa, que Fairuz se apresentou no Rio em 1961. É atribuído a essa diva o milagre de ter feito chover durante uma seca com sua canção "Shatti ya Dini" (Chova, ó mundo).

A carreira de Fairuz já estava consolidada quando, em 1975, começou a guerra civil libanesa. Sua decisão de não deixar o país, ao contrário de tantos outros artistas, deu a ela uma aura quase mística, a de uma mãe que jamais abandona a prole.

A resolução de não abandonar o Líbano nem durante os 15 anos de conflito pode ser uma das chaves para entender como Fairuz -outra vez, ao contrário de tantos de seus colegas- teve a coragem de dizer "não" ao voluntarioso príncipe-herdeiro.

Mohammad bin Salman, conhecido pelas iniciais MBS, é acusado de diversas graves violações aos direitos humanos na Arábia Saudita, um país que cerceia a liberdade de suas mulheres e reprime de modo violento qualquer protesto popular.

Especialistas acreditam, em especial, que MBS esteve envolvido na morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que desapareceu em 2018 durante uma visita ao consulado do país em Istambul. Segundo as investigações, Khashoggi foi sequestrado e desmembrado. Ele era um crítico do príncipe, que nega participação no incidente e acusa seus detratores de politizar a morte do jornalista.

Um dos apelidos de Fairuz em árabe é "al-samita al-kabira". Ou seja, "a eterna calada". Não costuma falar em público, razão pela qual é inclusive criticada. Não surpreende, pois, que ela não tenha comentado sua recusa em cantar na Arábia Saudita.

Mas no começo do mês o professor libanês-americano As'ad AbuKhalil comentou o episódio nas redes sociais. Uma filha de Fairuz confirmou que a cantora tinha decidido não se apresentar no país do príncipe-herdeiro MBS.

A história foi debatida nas últimas semanas na imprensa de língua árabe. Segundo o site Raseef 22, a recusa de Fairuz está relacionada a seu desgosto com as violações sauditas aos direitos humanos e também às políticas externas desse país.

Em 2017, de passagem pela Arábia Saudita, o premiê libanês Saad Hariri subitamente renunciou ao cargo. Acredita-se que o regime saudita tenha sequestrado e pressionado Hariri para que deixasse o governo, em uma tentativa bizarra -e desastrada- de influenciar a política do país.

Como lembra o jornal israelense "Haaretz", um dos primeiros a trazer a negativa da cantora libanesa à imprensa internacional, Fairuz não foi a primeira a dizer "não" a MBS. Em 2019, a rapper americana Nicki Minaj cancelou seu show depois da pressão de ativistas.

A decisão não é fácil, e tantos outros artistas internacionais têm aceitado os convites para participar das tentativas sauditas de "music washing"- lavagem com música, em inglês, no sentido de limpar a imagem usando concertos. Os americanos Mariah Carey e Justin Bieber estão entre os que se apresentaram ali.

À ocasião da apresentação de Justin Bieber, em 2021, a viúva do jornalista Khashoggi escreveu um artigo no Washington Post pedindo que artistas deixassem de colaborar com o governo de MBS. "Esta é uma oportunidade única para vocês enviarem uma mensagem ao mundo de que seu nome e talento não será usado para restaurar a reputação de um regime que mata seus críticos", ela afirmou.

Bieber se apresentou mesmo assim. Mais recentemente, o craque português Cristiano Ronaldo aceitou o convite para jogar no time saudita Al-Nassr.

Na avaliação do "Haaretz", acertada, a recusa de Fairuz rompeu anos de silêncio no mundo árabe em relação aos abusos do regime de MBS. Uma rachadura na parede, uma bolha estourada.

Segundo o jornal, "nem todo artista é capaz de dizer não ao príncipe [...], mas Fairuz provou que há aqueles que conseguem usar o poder e influência de sua celebridade para se distanciar do regime --mesmo quando outros deixam o palco em Riad com seus bolsos repletos de dólares".