Ex-aliada de Ortega recorda torturas psicológicas em 605 dias em prisão na Nicarágua
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Na cela de 24 metros quadrados, a ex-guerrilheira nicaraguense Dora María Tellez caminhava oito quilômetros por dia. A rotina durou até ela machucar o pé, quando passou a percorrer quatro quilômetros diários. "Fiz muitos exercícios porque era a única coisa que se podia fazer."
Tellez passou 605 dias em El Chipote, uma das prisões mais temidas pelos opositores do ditador da Nicarágua, Daniel Ortega. O período presa acabou no último dia 9 de fevereiro, quando foi libertada e deportada para os Estados Unidos ao lado de outros 221 presos políticos do regime.
Entre os libertos também estavam Juan Lorenzo Holman, diretor do jornal La Prensa, Lesther Alemán, líder estudantil que ganhou notoriedade após peitar o ditador em uma mesa de diálogo, e Cristiana Chamorro, pré-candidata à Presidência em 2021 e filha de Violeta Chamorro, que derrotou Ortega no pleito de 1990. As acusações que recaem sobre eles envolvem conspiração contra o país e divulgação de notícias falsas.
A decisão do líder nicaraguense surpreendeu familiares, organizações de direitos humanos e os próprios presos, que não sabiam aonde iam até entrarem no avião. Antes de embarcar, tiveram que assinar um papel para confirmar que viajavam voluntariamente, embora o destino não constasse no documento.
Enquanto voavam aos EUA, Ortega lhes impôs um último castigo: a Assembleia governista do país aprovou a toque de caixa uma reforma constitucional que tira a nacionalidade de "traidores da pátria", como são rotulados opositores ao regime. Os direitos políticos dos expatriados também foram cassados.
Após anos ou meses de isolamento, alguns deles relatam sentir o chão se mover, como se houvesse um terremoto. Outros pedem assistência médica para conseguir dormir. Para Tellez, as seguidas entrevistas para a imprensa e as conversas com parentes durante a última semana foram uma mudança brusca. "Na prisão, dos 1.440 minutos que tem o dia, eu falava um, com os carcereiros", conta.
A cela em que estava era para seis pessoas, mas ela estava sozinha e proibida de ter livros, lápis e papel. Por uma janela, tentava desvendar o horário do dia, já que nem mesmo os guardas podiam usar relógio.
A despigmentação nos braços e nas pernas que apresenta agora se deve aos escassos banhos de sol, de duas horas por semana. Outros desenvolveram diferentes sequelas, como dentes amolecidos e problemas de digestão ou de visão, por permanecerem ininterruptamente expostos à claridade ou à escuridão.
O pior período do isolamento, conta ela, foram os primeiros quatro meses, quando não podia receber a visita nem sequer de um advogado. "Estávamos totalmente sequestrados. Nossos parentes não tinham nenhuma informação sobre nós", afirma. Depois de a Anistia Internacional incluí-la numa lista de desaparecidos do país, ela passou a se encontrar com familiares e amigos, sem uma frequência definida.
A monotonia normalmente era interrompida pelos interrogatórios, nos quais a questionavam sobre a participação da Igreja Católica, dos EUA e de ONGs internacionais nos protestos que irromperam no país centro-americano há quase cinco anos. "As preocupações centrais eram totalmente tontas. Perguntavam, por exemplo, quem dava cursos de capacitação a jovens para prepará-los para uma rebelião", diz.
Os questionamentos dos funcionários são uma mostra da paranoia em que a ditadura nicaraguense mergulhou após as manifestações de 2018. Naquele ano, milhares de pessoas saíram às ruas contra uma reforma da Previdência proposta pelo regime de Ortega. Os protestos foram reprimidos com violência: ao menos 355 pessoas foram mortas, segundo a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos).
Nessa escalada autoritária, até Hugo Torres, que negociou a libertação de Ortega quando o país lutava contra outra ditadura, a da família Somoza, que comandou o país de 1934 a 1979, foi enviado à prisão.
Lá, Tellez viu o colega passar quando foi levado à enfermaria pela primeira vez, onde, diz ela, recebeu um tratamento negligente. Quase dez dias depois, ele foi transferido para um hospital, onde morreu, em fevereiro do ano passado. Ela soube da morte pelo irmão de Torres, durante uma visita.
"Minha relação com Hugo era muito próxima. Estivemos juntos em muitas coisas. Na tomada do Palácio Nacional, na guerrilha, na clandestinidade. Fomos presos no mesmo dia em 2021", afirma ela.
A alcunha de Tellez como a Comandante Dois foi imortalizada numa crônica de Gabriel García Márquez que conta a tomada do Palácio Nacional, em 1978. "Dora María Téllez, de 22 anos, uma moça muito bonita, tímida e absorta, com uma inteligência e um bom juízo que lhe haveriam servido para qualquer coisa grande na vida", descreveu o autor colombiano, vencedor do Nobel de Literatura.
A libertação dos presos acontece em um momento de isolamento internacional da Nicarágua. Ainda é cedo, porém, para dizer se o gesto é uma mostra de fraqueza ou força, segundo o cientista político nicaraguense Humberto Meza. Por um lado, o ditador tira uma bandeira importante da oposição. "Com esse movimento, ele ganha um degrauzinho de legitimidade", afirma. Por outro, abre mão do controle da vida dos opositores. "Depois da libertação, ficou óbvio que ele usava essas pessoas para barganhar."
A ideia da deportação, diz o ditador, foi de sua esposa e número 2 do regime, Rosario Murillo. "Todos esses presos por atentar contra a soberania são agentes de potências estrangeiras. Não estamos pedindo que tirem as sanções. É um assunto de honra, de dignidade, de patriotismo. Que levem seus mercenários."
A virada autoritária não surpreende Tellez, que rompeu com o líder ainda nos anos 1990. "Ortega entrou no controle do partido e praticamente eliminou os órgãos de decisão e consulta. Começou a passar por cima das decisões da direção e a ter um estilo personalista de condução", diz ela, que fundou outra agremiação.
A Comandante Dois não sabe dizer o que aconteceu com o ex-aliado. "Esse é um assunto que só os que estudam a parte psicológica desses personagens poderão responder."