Papa Francisco exerceu diplomacia fluida em seus 10 anos à frente da Igreja

Por MICHELE OLIVEIRA

MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - De um lado, um dos pontífices mais comunicativos da Igreja moderna. De outro, uma máquina diplomática que tenta realizar seu trabalho por meio de ações contínuas e cuidadosas. Às vezes, essas duas forças agem juntas no papa Francisco, em nome do objetivo maior de favorecer o diálogo e a busca pela paz. Em outras, apesar de suas boas intenções, resultam em curto-circuitos.

Um desses desencontros aconteceu em torno de um dos temas mais enroscados da geopolítica atual, a Guerra da Ucrânia. Em abril do ano passado, poucas semanas após a invasão do Exército de Vladimir Putin ao país vizinho, o Vaticano convidou para o rito da via-crúcis, na Sexta-Feira Santa, uma mulher ucraniana e outra russa, que seguraram juntas, lado a lado, a cruz em parte do percurso que simboliza o caminho de Jesus à sua crucificação.

A ideia foi levada adiante apesar de queixas públicas nos dias anteriores à celebração, manifestadas tanto pelo embaixador de Kiev junto à Santa Sé, quanto pelo arcebispo da Igreja Greco-Católica Ucraniana, que considerou a cena "inoportuna". Um incidente diplomático que resultou do esforço de equidistância praticado naquele momento pelo papa Francisco.

"Havia um sentimento de perda por parte da Ucrânia, e a escolha do papa pareceu uma reconciliação imposta. E uma reconciliação pode ser um problema para quem está sofrendo uma guerra", comenta Andrea Gagliarducci, vaticanista da rede americana Catholic News Agency e da agência italiana ACI Stampa.

O episódio mostra como a diplomacia do papa Francisco tem sido caracterizada pela fluidez em sua década à frente da Igreja Católica, completada nesta segunda-feira (13). "Ele tem uma abordagem muito pessoal, mais que diplomática. E quando algo se baseia em um relacionamento pessoal, ele muda de acordo com as circunstâncias", afirma.

A diplomacia do papa é fluida também porque esse modo de agir do argentino acontece simultaneamente ao trabalho tradicional, com conversas e visitas calculadas, chefiado pela secretaria de Relações Exteriores do Vaticano, hoje a cargo do britânico Paul Gallagher. "No fim, é preciso entender como essas duas coisas se combinam. Não há uma linha a seguir precisa, a diretriz é o instinto do papa", diz Gagliarducci.

Ao longo dos meses, Francisco foi deixando de lado a equidistância em relação ao conflito, ao condenar com cada vez mais ênfase a guerra "absurda e cruel", ainda que tentando oferecer uma porta aberta a Putin. Em diversas ocasiões, manifestou disposição de viajar a Kiev e a Moscou para atuar como mediador, o que não tem perspectivas para acontecer. O problema, diz Gagliarducci, é que a mediação da Santa Sé não pode ser imposta. "Ela se oferece somente quando solicitada. E, para a Rússia, ainda não é o momento", afirma o vaticanista.

A busca pelo diálogo e a manutenção de pontes, seja entre o Vaticano e outros países, seja entre as próprias nações, é exercida por Francisco também por meio de suas viagens internacionais. Primeiro pontífice nascido fora da Europa depois de 13 séculos, o argentino deslocou o eixo dos destinos papais para países mais distantes de Roma, com especial atenção para Ásia e África.

Das 40 viagens já realizadas, 16 foram dentro do continente europeu, 11 para o asiático, oito para o americano e cinco para o africano. Com média de quatro partidas internacionais por ano -considerando a interrupção de 2020, em razão da pandemia-, ele supera seu antecessor, Bento 16, com três viagens por ano, sendo 17 de 24 para o continente europeu. O ritmo se aproxima, porém, do de João Paulo 2º, que fez 104 viagens, bem distribuídas pelo globo, ao longo de 26 anos de papado.

Pesam questões de saúde na comparação com Bento 16, mas as escolhas do argentino de ir a lugares mais remotos, como Mianmar, onde quase 90% da população é budista, refletem sua ideia de igreja. Mesmo na Europa, nunca foi a grandes católicos como França e Espanha, preferindo Bulgária e Romênia. "O papa é atento àquilo que acontece nas periferias, porque fala de uma 'Igreja em saída'", afirma Matteo Cantori, professor de história das relações entre Estado e Igreja da Universidade Niccolò Cusano, em Roma.

Presente na primeira exortação apostólica de Francisco, em novembro de 2013, a expressão "Igreja em saída" é um dos fundamentos do seu pontificado. Significa uma Igreja de portas abertas para todos, mas também missionária e proativa para ir ao encontro das pessoas, menos voltada para si própria. "Sua diplomacia deu muitos passos à frente. Ela olha para o futuro e não só dentro de determinadas fronteiras. Dá voz para quem não a tem, incluindo não-católicos e não-cristãos", diz Cantori.

Entre os momentos mais marcantes de suas viagens, estão a missa realizada no México, em 2016, na fronteira com os Estados Unidos, ponto simbólico pela imigração, a ida à ilha grega de Lesbos, no mesmo ano, que concentra campos de refugiados, e a recente visita à República Democrática do Congo, onde ouviu vítimas de violência do conflito local que se arrasta por décadas.

Em 2016, foi histórico o encontro, em Cuba, entre o papa e Cirilo, o líder da Igreja Ortodoxa Russa.

Além da Guerra da Ucrânia, restam ao menos dois outros pontos que testam a diplomacia do papa. O relacionamento com a China, com quem a Santa Sé não têm relações formais, ao mesmo tempo em que o Vaticano reconhece Taiwan diplomaticamente.

Foi no papado de Francisco, em 2018, que foi assinado um contestado acordo com Pequim sobre a nomeação de bispos, renovado novamente em outubro. O tratado buscava aliviar uma divisão de longa data entre a igreja oficial, apoiada pelo Estado chinês, e um rebanho clandestino leal ao Vaticano. Foi a primeira vez desde a década de 1950 no país asiático que ambos os lados reconheceram o papa como líder supremo da Igreja Católica.

Mais urgente, porém, é a crise com a Nicarágua, onde religiosos foram presos e instituições ligadas à igreja, como universidade e a Cáritas, foram nos últimos dias banidas pela ditadura de Daniel Ortega. "É uma situação de ataque à igreja muito forte. Ali, o problema é que é impossível o diálogo", diz o vaticanista Gagliarducci.