Países nórdicos unificam Forças Aéreas para enfrentar a Rússia

Por IGOR GIELOW

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em mais um efeito colateral da invasão russa da Ucrânia, as Forças Aéreas dos quatro países nórdicos tomaram a inédita decisão de unificar suas frotas, planejamento, operações e patrulhas.

Em conjunto, Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca têm 247 caças, poderio conjugado equivalente ao individual dos principais membros europeus da Otan (aliança militar liderada pelos Estados Unidos), como o França e Turquia.

Na sexta (24), os comandantes das quatro Aeronáuticas anunciaram o acordo, que no papel não cita a palavra Rússia, mas que eles mesmo admitem existir apenas pelo temor de futuras agressões de Moscou.

O arranjo em si havia sido assinado uma semana antes durante encontro na principal base americana na Europa, em Ramstein (Alemanha), o que indica o patrocínio dos EUA. Noruega e Dinamarca integram a Otan, enquanto Finlândia e Suécia pediram para ingressar no clube após o início da guerra ?processo que ainda está em curso.

"O objetivo é operar como uma única força, desenvolvendo um conceito nórdico para ações conjuntas baseado na conhecida metodologia da Otan", disse o comunicado.

Não foram dados detalhes ou prazos para implementação do plano, que inclui do planejamento estratégico ao compartilhamento de bases e aviões. Há aqui aspectos complementares: a Suécia tem uma frota mais diversa, mas carece dos melhores recursos de patrulha marítima da Noruega, por exemplo.

Historicamente, quando não estavam em guerra entre si, os países da região sempre tiveram atritos com o grande império a leste pela proximidade geográfica, com reflexos na realidade militar local.

Na Guerra Fria, Estocolmo desenvolveu em casa a terceira mais poderosa Força Aérea do mundo, já que era aliada ocidental, mas não fazia parte da Otan. Um efeito colateral disso é que usa seus caças, o Gripen que também foi adotado pelo Brasil, enquanto os vizinhos terão todos em breve apenas o F-35 americano.

A medida nórdica dá continuidade à metamorfose da paisagem de segurança europeia desde que Vladimir Putin começou a se estranhar com o Ocidente, ainda no seu primeiro mandato como presidente (2000-2004), e explodiu com a guerra no ano passado, que gerou uma onda de rearmamento.

Em 2004, a Otan começou a operar de forma conjunta caças sobre os Estados Bálticos, três ex-repúblicas soviéticas que se sentem particularmente vulneráveis a eventuais ambições russas. Elas haviam entrado na Otan em 1999, algo considerado por Putin uma traição da promessa ocidental de não expandir as fronteiras militares a leste após a vitória na Guerra Fria, com o fim da União Soviética em 1991.

Fracas do ponto de vista militar, Estônia, Letônia e Lituânia nem têm Força Aérea própria. Membros da Otan com caças enviam aviões para patrulhas na região ­?neste ano já voaram por lá F-35 holandeses, Eurofighter britânicos, F-16 portugueses e romenos.

A anexação da Crimeia por Putin em 2014 fez o esquema ser ainda mais reforçado, e outra iniciativa surgiu, de compartilhamento de frotas de aviões-tanque e de transporte, um ativo também caro e de difícil manutenção por governos menores. Até o desenvolvimento conjunto de um caça ítalo-britânico-japonês está na mesa.

O arranjo báltico poderá ser usado para compensar os caças MiG-29 soviéticos que Polônia e Eslováquia começaram a enviar para cobrir as perdas do modelo por Kiev. O governo ucraniano, contudo, pede mais: quer aviões ocidentais como o F-16, algo que ainda é visto como tabu na Otan.

Se os ares são o ponto mais evidente da cooperação, ela está tomando forma também em terra. A União Europeia acertou este mês a entrega de ? 1 bilhão em munição de 155 mm de seus arsenais e o valor equivalente em obuses novos para Kiev.

Poucos acreditam que os números serão cumpridos integralmente, mas a iniciativa é inaudita no continente desde que os EUA e a União Soviética armaram seus aliados de lado a lado da Cortina de Ferro após a Segunda Guerra Mundial.

No passado recente, a integração política e econômica da Europa, simbolizada pela UE e pelo euro, inspiraram projetos militares à margem da Otan ?uma forma de tentar reconquistar alguma independência ante Washington, ilusório que fosse.

Agora, como a própria sede do acordo nórdico mostra, as cartas são combinadas com os americanos. Os EUA são responsáveis por 75% dos US$ 115 bilhões que Kiev recebeu de ajuda militar do começo da guerra até janeiro, e querem ver os europeus pagando mais contas.

O principal alvo é a Alemanha, dona da maior economia do continente. Até aqui, foram vencidos alguns obstáculos, como a objeção que havia em Berlim ao envio de tanques de sua fabricação para a Ucrânia ­?na segunda (26), 18 unidades das próprias Forças Armadas alemãs chegaram ao país invadido, assim como um número não revelado de modelos Challenger 2 britânicos.

No contexto maior da Guerra Fria 2.0, o trabalho dos EUA na Europa não é muito diferente da militarização da Austrália e do Japão sob as bençãos da Casa Branca, para enfrentar a principal aliada da Rússia, a China, em seu próprio quintal.