Martírio de haitianos para trazer filhos ao Brasil reflete escalada da crise no país
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O haitiano Emanol Buno não quer de maneira alguma que seus filhos, gêmeos de 10 anos, tenham que ficar por muito tempo em Porto Príncipe, capital de seu país de origem. E tem razões concretas, afinal: a cidade é hoje praticamente controlada por gangues armadas.
O país caribenho que faz fronteira com a República Dominicana e que por mais de dez anos viu as Forças Armadas brasileiras atuarem em seu território assiste hoje ao desmantelamento do Estado, não tem representantes eleitos em cargos de poder e, em cada dia de 2023, registrou em média mais de sete mortos pela violência das gangues, segundo balanço da ONU.
É em meio a esse cenário de crise ?humanitária, social, econômica, política, de segurança e de legitimidade? que Buno, no Brasil desde 2017, tenta trazer os filhos Dany-Lore e Elsharaw para Blumenau, em Santa Catarina, onde trabalha como pedreiro e vive com a esposa, a também haitiana Manise. Mas os pais veem sua esperança minguar.
Desde 2021, eles buscam na Justiça brasileira a autorização para que as crianças possam viajar sem a exigência de obtenção de visto. O casal integra um fenômeno crescente que desafia a diplomacia: a judicialização de casos de haitianos que tentam trazer familiares ao Brasil.
Somente a advogada Débora Pinter, responsável pelo caso dos gêmeos, diz atender cerca de 500 casos parecidos em seu escritório. A estratégia também está no cotidiano da advocacia pública, por meio das defensorias.
Membros dos setores diplomático e migratório do governo brasileiro manifestam preocupação com o tema, que também já despertou discordâncias dentro do próprio STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Familiarizados com o assunto dizem que o setor consular brasileiro no país caribenho trabalha numa espécie de "linha de produção fordista" para dar conta da alta demanda de solicitação de vistos.
Quando um juiz acata uma demanda no Brasil, esse caso passa na frente de todos. Já os imigrantes reclamam da morosidade do processo.
No caso de Buno, seus filhos vivem na comuna de São Luís do Sul, a mais de 100 km de Porto Príncipe. Caso consigam viajar ao Brasil, teriam antes de ir à capital haitiana para o embarque. E aí reside outro drama dos pais: o medo da violência à qual os gêmeos poderiam estar sujeitos.
O agravamento da situação fez a ONU intensificar pedidos para que a comunidade internacional se volte a uma das maiores crises humanitárias do Ocidente. Em recente relatório, a organização revelou que ao menos 531 pessoas morreram e outras 277 foram sequestradas desde janeiro em meio à violência de gangues no país.
Ainda segundo a ONU, cerca de 4,9 milhões de haitianos ?quase metade da população local? estarão em em níveis graves de insegurança alimentar até o final do semestre. Em outras palavras, a fome se agravou devido a fatores como a violência, que trava a comunicação entre campo e cidade para escoar alimentos; as condições extremas do clima, que reduzem a produção; e a inflação.
"Há um problema profundo do funcionamento das instituições do Estado haitiano, uma questão estrutural que já tentou ser solucionada, mas permanece. O Parlamento está disfuncional, e Ariel Henry, o premiê, tem governado por decretos", diz João Fernando Finazzi, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA da PUC-SP.
A crise local se agravou após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, morto a tiros em sua casa em julho de 2021. O caso, hoje, é investigado nos EUA, e há poucas respostas além do fato de que a ação contou a participação de mercenários estrangeiros de países como a Colômbia.
Após a morte de Moïse, que ameaçou deixar um vácuo no poder, Henry assumiu as rédeas. Ele não conta, porém, com respaldo popular. Com o mandato de legisladores vencido, não há representantes eleitos. E novas eleições não têm data para ocorrer.
Assim, a violência das gangues, em especial a conhecida como G9, impera. Finazzi explica que a questão é um problema crônico, ligado a um processo desordenado de urbanização e empobrecimento na década de 1970.
O drama atual reacendeu debates sobre uma possível nova intervenção externa no país ?um modelo que, no passado, mostrou-se fracassado? com os EUA pressionando parceiros como o Canadá a liderarem uma empreitada militar no país da América Central.
Frantz Duval, editor-chefe do Le Nouvelliste, um dos principais jornais haitianos, diz à Folha que uma intervenção não é a saída. "E, se tal 'aventura' acontecer, não será suficiente para resolver a crise de segurança. Atores como a ONU têm orçamentos enormes, intervêm, apoiam um campo político, mas não têm a obrigação de produzir resultados."
O jornalista critica a postura da comunidade global. "Vemos a reação dos países ocidentais à Guerra da Ucrânia e vemos o silêncio e a falta de reação para ajudar a promover uma solução no Haiti."
Ele diz que esperava postura mais assertiva de Brasília. "Infelizmente, o Brasil parece ter se afastado do Haiti. Graças ao seu conhecimento do país após seu envolvimento na liderança da Minustah [missão de paz da ONU que atuou de 2004 a 2017], poderia ajudar. E não só a restaurar a segurança."
A escalada da crise na nação mais empobrecida das Américas desperta em alguns governos, em especial o de Joe Biden, a preocupação com o fluxo migratório. E Washington pode dizer que tem argumentos.
De outubro a fevereiro passados, 37,2 mil haitianos foram barrados na fronteira sul dos EUA quando tentavam entrar no país pelo México. A cifra é mais que o dobro da observada no mesmo período anterior.
Já no caso brasileiro, o desdobramento é outro: há cada vez mais crianças e adolescentes entre haitianos registrados no país. Se há dez anos pessoas até 15 anos eram apenas 5% dos haitianos registrados, de janeiro a março deste ano essa faixa etária superou 28%.
Por outro lado, as cifras anuais de haitianos que ingressam no Brasil são cada vez menores, mostram dados reunidos pelo OBMigra, o Observatório das Migrações Internacionais, a pedido da reportagem. Em 2022, 6.770 haitianos foram registrados no Brasil, número bem menor que o observado em anos como 2020 (23.567) ou 2016 (42.423).
Desde 2012, devido à crise social agravada por grandes terremotos, o Brasil concede vistos de acolhida humanitária a haitianos. Segundo o Itamaraty, até aqui, foram concedidos mais de 90 mil documentos do tipo ?sem contar os haitianos que emigram ao Brasil em busca de refúgio, outro mecanismo migratório. Nesta sexta-feira (31), o governo Lula renovou a portaria responsável por liberar a concessão de vistos.
Para Tadeu de Oliveira, coordenador de estatísticas do OBMigra, as mudanças na migração haitiana têm relação direta com as condições do mercado de trabalho e da economia brasileira. "Eles começam a vir para cá num momento de prosperidade econômica. Mas então há um processo de esgotamento, de crise econômica e social. E eles precisam enviar dinheiro para as famílias."
Não à toa, haitianos, que antes compunham a principal mão de obra migrante no mercado formal de trabalho, perderam esse posto para os venezuelanos ?em um cenário que, além do agravamento da crise econômica, segundo especialistas, tem relação com o racismo, a discriminação social e a barreira da língua à qual estão sujeitos.