Surto de sarna entre afegãos no aeroporto de Guarulhos escala crise migratória

Por MAYARA PAIXÃO E BRUNO SANTOS

GUARULHOS, SP (FOLHAPRESS) - Entre os que estão todos os dias ali, há um consenso: mais cedo ou mais tarde, algo assim ocorreria. Na última semana, um surto de sarna entre afegãos que moram temporariamente no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, jogou luz nas precárias condições de higiene às quais estão submetidos.

Hashmat Ullah Ahmadi, 33, chegou há duas semanas com a esposa e os três filhos. Sem vaga nos abrigos para imigrantes, a família tem ficado no Terminal 2 do aeroporto, ao lado de dezenas de outros afegãos --na manhã desta quinta (29), eram mais de 140, muitos deles crianças.

Neste tempo, Ahmadi só pôde tomar banho duas vezes, a última há três dias. Seu caçula, Danyal, 3, é um dos que estão com lesões de escabiose, a sarna humana. Quando o surto foi detectado, há uma semana, a Prefeitura de Guarulhos distribuiu remédios no local, em especial ivermectina, vermífugo recomendado nesses casos. Sem acesso a condições básicas de higiene, o menino volta a sentir incômodos.

Em barracas improvisadas com mantas, cobertores e outros tecidos, os imigrantes que fogem do regime fundamentalista do Talibã, que voltou ao controle do Afeganistão em agosto de 2021, têm apenas aquele lugar para dormir, fazer todas as refeições e conviver enquanto buscam uma moradia. Um cenário propício não apenas para a disseminação da sarna, como também de outras doenças infecciosas.

Muitos deles escolheram o Brasil pelo que descrevem como uma cultura vista como acolhedora mas também pela possibilidade de obter o visto de acolhida humanitária, concedido desde setembro de 2021. Até o final de maio, 7.517 haviam sido emitidos para afegãos.

Ahmadi recorreu a essa opção ao ver que, no Irã, para onde foi inicialmente, não teria condições de dar a seus três filhos educação --em especial à primogênita, de 9 anos. No regime teocrático liderado a mão de ferro, os direitos de meninas e mulheres são escassos.

Mohamed Navid Haidari, 39, pensou o mesmo. Com a esposa e os quatro filhos, esse antigo tradutor da Otan (aliança militar ocidental) na província central de Parvan chegou há dez dias. E desde então está no Terminal 2 de Guarulhos. Ele esperou por 18 meses o visto.

Primeiro Navid, que ajudou a reportagem a se comunicar com muitos ali que só falavam persa, tentou refúgio em um dos países da aliança militar --"Mas um jogava a responsabilidade para o outro, e ninguém ajudava". Enquanto isso, as ameaças do Talibã cresciam.

"Bateram na porta do meu pai, chamando-me de traidor e perguntando onde eu estava." Depois de andar por mais de 30 horas para cruzar a fronteira a pé com o Irã, a família pediu o visto do Brasil.

Said, 26, que também trabalhava como tradutor para agências dos EUA, também buscou primeiro o Irã como novo lar. "Mas são racistas com a gente, em especial se tivemos proximidade com os EUA. Fui deportado de volta ao Afeganistão." Ele, que chegou ao Brasil em julho passado, mas teve de voltar ao aeroporto após não encontrar abrigo, diz se sentir humilhado com a situação.

Durante as três horas em que a reportagem esteve no local, funcionários usando roupas de proteção pessoal que lembravam cenas do ápice da pandemia higienizaram piso e bancos com peróxido de hidrogênio. Era apenas o segundo dia em que isso ocorria, segundo os relatos.

Em nota, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) disse que as ações relativas aos refugiados estão fora de sua alçada. Mas que tem exigido do aeroporto que o acampamento seja desmontado diariamente para realização de limpeza e desinfecção do espaço.

Uma equipe da Secretaria Municipal de Saúde compareceu para aplicar vacinas e distribuir remédios. Entre muitos presentes, há queixas de dores e desconfortos. Ahmadi há nove anos levou um tiro na perna de um membro do Talibã. O local da cicatriz voltou a incomodar, e ele afirma que até aqui não encontrou atendimento adequado.

Mas, a despeito do clima geral de agradecimento pela oportunidade do visto humanitário, a questão-chave que muitos manifestam é traduzida por Mustafa Habibi, 19, um voluntário afegão que chegou ao Brasil há dois meses e nesta quinta estava no Terminal 2, como representante de uma ONG, para ajudar na tradução do persa para o inglês. "Não basta dizer 'venha'. Como as pessoas ficam aqui?"

A ausência de uma política de permanência expõe os imigrantes à insegurança, sem saber a quem recorrer. O estopim do surto de sarna, porém, levou a uma espécie de força-tarefa entre o Ministério da Justiça e a Prefeitura de Guarulhos, que se reuniram nesta quinta.

O Secretário Nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, afirma que ações emergenciais estão sendo tomadas para abrigar as centenas de afegãos que hoje estão no Terminal 2. À reportagem ele diz que recursos serão liberados pela pasta e que um plano para acolher novos fluxos deve ser publicizado em breve.

O prefeito de Guarulhos, Gustavo Henric Costa (PSD), o Guti, afirma que todas as 177 vagas de abrigo no município estão ocupadas, mas que "a postura do governo federal mudou". "Começaram a enxergar que esse é um problema humanitário gravíssimo", diz ele, que repete que a cidade não tem condições de lidar sozinha com o fluxo de afegãos.

Ele também afirma que a prefeitura pediu à GRU Airport, concessionária do aeroporto, a disponibilização de um banheiro para os afegãos, mas que não teve resposta. Em nota, a empresa afirma que intensificou a higienização dos banheiros da área e que o vestiário é uma área destina a funcionários e que sua disponibilidade é viabilizada "de acordo com planejamento alinhado com a Prefeitura".

A expectativa era que até sexta (30) todos os imigrantes que estavam no aeroporto fossem levados para abrigos. Mas também que, nas próximas semanas, um fluxo semelhante possa se formar novamente.

Nos abrigos, os desafios tampouco se anulam. Khadija Ibrahim Khail, 22, conseguiu uma vaga para ela e para a mãe. Mas relata desconforto com alguns aspectos do local, como marcadores de gênero e pressão para que comam alimentos não permitidos no islamismo.

Nesta quinta-feira ela estava no aeroporto, novamente, porque acredita que ali, ao lado dos demais, pode buscar novas soluções. Khail era estudante de administração em Cabul. Quando o Talibã triunfou, seu pai, oficial de polícia, foi preso e torturado. Ameaçadas, ela e a mãe fugiram para a Turquia. Mas, depois de dois anos no país, a autorização de residência expirou --e o Brasil se tornou o próximo destino.

O visto de acolhida humanitária concedido pelo Brasil facilita aos afegãos a obtenção de uma autorização de residência para viverem no Brasil. Dados reunidos pelo Observatório das Migrações Internacionais a pedido da reportagem mostram que, desde outubro de 2021 até maio passado, 3.776 afegãos obtiveram autorização de residência no Brasil ou, então, pediram refúgio no país.

O perfil migratório predominante é o familiar, com uma maioria de homens, hoje 59% dos afegãos em processo de regularização. Crianças de até 6 anos são 17% desses imigrantes.

Para além da preocupação com a saúde dos afegãos, ativistas que atuam com frequência no Terminal 2 relatam temor pela segurança dessas famílias. Relatos dão conta de que há cada vez mais tentativas de aliciamento dos afegãos com propostas falsas de serviços, por exemplo, para emigrar aos EUA.

E os dados sugerem que, cada vez mais, afegãos buscam o Brasil como um país de passagem, para depois ir a outro lugar --EUA na dianteira. A diferença entre o número de entradas e de saídas de afegãos no território brasileiro tem diminuído mês a mês.

Entre aqueles hoje no Terminal 2 do Aeroporto de Guarulhos, a maior vontade expressa era ficar. "Só queremos oportunidades de prosperar. Fora as dificuldades aqui, em especial para tomar banho, estou muito feliz e aliviado", diz Hashmat Ullah Ahmadi.