Armênios se rendem e dissolvem governo autônomo no Azerbaijão

Por IGOR GIELOW

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Após 32 anos de disputas que gestaram duas guerras e milhares de mortos, o governo autônomo armênio de Nagorno-Karabakh capitulou ante a ofensiva militar do Azerbaijão e anunciou sua dissolução. A autoproclamada República de Artsakh deixa de existir em 2024.

O presidente da região, Samvel Saharamanyan, assinou um decreto nesta quinta (28) extinguindo todas as instituições locais no próximo dia 1º de janeiro. Enquanto isso, mais da metade da população local de 120 mil pessoas já fugiu pela sinuosa estrada de montanha que liga o território à Armênia.

Lideranças locais e o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, acusam Baku, que tomou o controle da região em uma ofensiva militar relâmpago de 24 horas na semana passada, de promover uma limpeza étnica.

Segundo o governo em Ierevan, até a manhã desta quinta 68.386 refugiados haviam cruzado a fronteira. Um deles, Hayk, contou por mensagem de texto que ele e sua família foram bem recebidos na terça (26) em Goris, na Armênia, por um time da Cruz Vermelha.

"Nos deram comida e checaram se tínhamos roupas adequadas. Não precisamos de acomodação porque temos parentes aqui, em Ierevan e Gyumri, mas não sei para onde irão muitas dessas outras pessoas", afirmou o engenheiro de 43 anos, que pediu para não ter o sobrenome revelado.

"Esse é um ato direto de limpeza étnica, algo que nós vínhamos alertando a comunidade internacional há muito tempo", afirmou Pashinyan em uma reunião governamental nesta quinta. Ele voltou a pedir que potências estrangeiras tomem "ações concretas contra o Azerbaijão".

Suas palavras tendem a cair no vazio. A Rússia, tradicional tutora militar da Armênia, mudou de posição aparentemente para promover uma acomodação com a Turquia, seu misto de aliada e rival que patrocina militarmente o governo em Baku.

Vladimir Putin já tinha uma relação conflituosa com Pashinyan, que tentou se aproximar do Ocidente. Os Estados Unidos e a União Europeia publicamente o apoiam e falam em rever a relação com o Azerbaijão, mas dificilmente algo irá acontecer na prática. No caso europeu, principalmente, há o peso da compra de gás do país do mar Cáspio em jogo.

O premiê armênio por fim enfrenta críticas dos próprios líderes de Nagorno-Karabakh e protestos em casa. Ele depende da Rússia, com quem dobrou o fluxo comercial após o início da Guerra da Ucrânia em 2022. Politicamente, é acusado de não proteger seu povo numa região ainda marcada pelo genocídio armênio pelos otomanos em 1915, algo que a Turquia, herdeira do império, não reconhece.

A arquitetura de poder na região sofre, assim, o maior abalo desde a década de 1820. A Rússia czarista havia tomado o controle do Sul do Cáucaso das mãos da dinastia Qajar na Pérsia (atual Irã) ao fim da última Guerra Russo-Persa.

O caos decorrente da Revolução Russa de 1917 e da guerra civil subsequente dissolveu a organização local, com azeris, armênios e georgianos lutando por autonomia. A vitória militar dos bolcheviques acabou dando o desenho definitivo na região em 1921, com fronteiras arbitrárias e bolsões de grupos étnicos isolados das populações maiores.

Era o caso de Nagorno-Karabakh, incrustrado no Azerbaijão, e de Nakhchivan, exclave azeri entre Armênia, Turquia e Irã que agora vira um novo foco potencial de tensão. Tanto o autocrata azeri Ilham Aliyev quanto seu protetor, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, já disseram ser vital ligar a região por terra ao Azerbaijão.

O arranjo comunista durou 70 anos na região, mas as tensões nacionalistas já haviam desembocado em conflitos no ocaso da União Soviética, durante a liberalização proposta por seu último líder, Mikhail Gorbatchov (1931-2022). Quando as 15 repúblicas se separaram de vez, em 1991, a disputa virou guerra.

O primeiro conflito durou de 1992 a 1994 com vitória armênia, melhor equipada e já sob a proteção militar de Moscou, que tem no país sua maior base no exterior. Áreas em torno de Nagorno-Karabakh foram desabitadas na prática, com moradores expulsos para Baku, criando um tampão protegendo o território e o ligando à Armênia.

A autoproclamada República de Artsakh, nome armênio do enclave, não era reconhecida senão por outras três regiões disputadas controladas na prática por Moscou: a Transdnístria, encrave pró-Kremlin em Moldova, e a dupla Ossétia do Norte e Abakházia, tomadas na prática pela Rússia na guerra de 2008 contra a Geórgia.

Em 2020, com a ascensão turca na região transmutada em apoio militar direto, com os famosos drones Bayraktar-TB2 e outros equipamentos, os azeris lançaram uma guerra de 44 dias que reconquistou as regiões.

Putin interveio e mediou um cessar-fogo com uma força de paz russa como garantidora. Era um arranjo frágil, até porque as atenções do Kremlin já se viravam para o processo que desaguou na invasão da Ucrânia.

A nova realidade geopolítica levou lentamente à preparação da tomada militar de Baku do território. Ela ocorreu em 24 horas, na segunda (18) passada. Era o fim de três décadas de turbulência, e o começo de mais um capítulo de desterro na região.

Aliyev até prometeu criar "um paraíso" no território, mas os armênios étnicos não compraram a ideia, algo sensato dado o histórico regional. Um importante líder local, o bilionário banqueiro Ruben Vardanyan, foi preso na quarta (27) e foi acusado nesta quinta de financiar o terrorismo por Baku.

As implicações dessa reorganização ainda não são totalmente conhecidas, a começar pelos termos do arranjo entre Putin e Erdogan, no qual o russo certamente buscou garantir alguma estabilidade no seu flanco sul, dada a concentração de esforços na Ucrânia.

Mas há outros fatores, que passam pelo destino de Nakhchivan. "O iranianos agora enfrentam um Azerbaijão hostil e reforçado", escreveu nesta quinta o analista Kamran Bokhari, da consultoria americana Geopolitical Futures. "Mais importante, os trucos agora têm influência sobre o flanco norte do Irã, algo que nem os otomanos conseguiram contra os rivais persas", disse.

O autocrático Erdogan, com efeito, é o maior vencedor desse processo, empoderando sua posição na aliança militar ocidental, a Otan, rival do mesmo Putin com quem combina a nova divisão do Cáucaso.