Argentinos evocam 'nunca mais' e citam Bolsonaro ao votar no 2º turno em SP
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os argentinos Oscar, 76, e Nora, 78, estão há 46 anos no Brasil. E esta se trata da primeira vez nessas mais de quatro décadas em que o casal comparece em uma representação diplomática para votar.
Ex-professores de psicologia da UBA (Universidade de Buenos Aires), eles tiveram de se exilar da última ditadura militar na Argentina com os dois filhos devido à perseguição do regime. Neste segundo turno que opõe Javier Milei a Sergio Massa na disputa pela Casa Rosada, sentiram que precisavam fazer sua voz se representar nas urnas.
Os dois, que preferiram não dar o sobrenome nem ser registrados em imagens, votaram no Consulado-Geral em São Paulo, na avenida Paulista, próximo à estação Consolação da linha 2-verde do Metrô.
"Era totalmente imprevisível", afirma Oscar sobre o fato de um presidenciável, Milei, que questiona publicamente a brutalidade e o número de vítimas da ditadura.
A esposa, Nora, acrescenta que viu Milei ganhar protagonismo na mesma época em que Jair Bolsonaro (PL) governava no Brasil. "Avisei meus amigos na Argentina sobre o que isso representaria, mas não deram ouvidos."
A votação de argentinos que vivem no exterior não é obrigatória --em território argentino, por sua vez, é compulsório para aqueles entre 18 e 65 anos. Segundo números da embaixada argentina, há cerca de 23 mil argentinos habilitados a votar no Brasil, 10 mil deles em São Paulo.
Mas a disparidade entre o número total e os que de fato vão às urnas é significativa. No primeiro turno das eleições, votaram apenas 2.600 argentinos no Brasil, sendo 1.100 deles em São Paulo.
José Manuel Añanos, 75, nascido em Buenos Aires, está desde 1976 no Brasil. Poderia não votar, tanto por estar no exterior, mas também pela idade. "Mas essa é a única ferramenta que temos para a mudança. Se não voto, significa que sou indiferente. Não podemos ficar somente nas críticas", diz ele.
Como muitos outros que falaram com a reportagem após votar, ele descreve a Argentina como um "freio de mão" para as ambições sociais e econômicas de seus cidadãos. "Assim, no final é a economia que vai ter a maior voz nas urnas."
Añanos é crítico a propostas do ultraliberal Milei, mas discorda da equiparação feita entre a figura do economista e a de Bolsonaro. "O acordo selado com Maurício Macri para o segundo turno é uma aliança que o forçará a se moderar. Vai haver o freio do macrismo, que é uma direita democrática, muito diferente do que representa Bolsonaro."
Mas para muitos outros eleitores era inevitável a comparação entre o ex-presidente brasileiro e o "outsider" argentino que angariou forças para competir contra o peronismo pela Casa Rosada.
Os amigos Nora Albornoz, 57, e Armando Vivas, 65, há dez e 25 anos no Brasil, respectivamente, foram votar juntos. "A sensação é a de que, se ganhar Milei, a Argentina terá um Bolsonaro. Tentei explicar isso aos meus amigos que vivem lá, mas, uma vez que as pessoas não viveram [o governo Bolsonaro], elas não entendem", lamenta ela.
Ramiro Luege, 45, cientista social que trabalha com recursos humanos e há dez anos vive no Brasil, afirma que Milei "colocou em pauta coisas que estavam fora de discussão", referindo-se a pilares do Estado como a educação pública. "É alguém sem respeito pela democracia."
Inés Terra, 38, pesquisadora e filha de pai brasileiro, diz que é como "se estivesse vivendo o mesmo que o Brasil passou com Bolsonaro". "Mas a Argentina não se recupera de um governo de desmonte como o de Bolsonaro, em especial pela dívida externa que temos", afirma ela, que votou com um "pañuelo" verde no braço, símbolo da luta pelo direito ao aborto --que as argentinas conquistaram.
O psicanalista Hernán Siculer, 51, viajou de Santos à capital e votou com uma camiseta temática. "Memória, verdade e justiça", lia-se na frase estampada ao lado do símbolo das Mães e Avós da Praça de Maio. Anti-Milei, ele diz que esse segundo turno se trata de uma questão de "preservar a civilização contra a barbárie".
"Trata-se de um voto a favor da dignidade humana, de um Estado forte", afirma ele, acompanhado da esposa brasileira e do filho Santiago, 16, que, com nacionalidade argentina, também tentou votar pela primeira vez, mas não conseguiu por detalhes burocráticos.
"É a situação mais crítica que vivemos desde a redemocratização; pautaram um discurso de afronta aos direitos humanos que penetra na subjetividade. Não é difícil que um povo esqueça sua memória."
Um grupo de brasileiros também parou em frente ao consulado para acompanhar amigos argentinos que votariam.
No grupo, o professor de linguística da USP Adrián Pablo Fanjul, há 26 anos no Brasil, votou com uma camiseta preta com a frase "1964 nunca mais", em referência à ditadura militar no Brasil. "Se tivesse uma com '1976 [ano de início da última ditadura argentina] nunca mais', viria com ela", diz ele, que apoia o peronista Sergio Massa. "É uma questão de evitar que um projeto fascista ganhe."
Para a professora de espanhol Mirta Archivaldo, 70, por sua vez, a questão é "evitar que a Argentina se torne uma Venezuela --e já está se tornando". "Estive na Argentina na semana passada e uma pessoa me disse algo que adorei: 'Se você tem um câncer terminal e tem uma fórmula para te salvar, você abraça ela'", diz. "Não amo Milei, mas ele é uma luz no fim do túnel."
Também contra o ministro da Economia Sergio Massa, Dora Ferrer, 81, decidiu votar no segundo turno mesmo não tendo comparecido no primeiro. "Não é possível que o peronismo ganhe novamente."