Crise entre Venezuela e Guiana faz Brasil reforçar fronteira norte
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O Brasil reforçou sua presença militar na região Norte do país devido à crise provocada pelo referendo acerca da anexação de um território equivalente a dois terços da Guiana, marcado pela Venezuela para o próximo domingo (3).
"O Ministério da Defesa tem acompanhado a situação. As ações de defesa têm sido intensificadas na região da fronteira ao Norte do país, promovendo maior presença militar", afirmou a pasta chefiada por José Múcio, em nota.
Não há detalhes, contudo, acerca do que seriam essas ações. Segundo a reportagem ouviu de militares na região, não há nenhum alerta de grande mobilização decretado, o que leva a crer que o governo Lula (PT) busca dar um aviso aos dois governos. Mais cedo, Mucio havia prometido reforço na cidade fronteiriça de Pacaraima (RR) ao senador Hiran Gonçalves (PP), que é do estado.
O Itamaraty está preocupado com a crise, que envolve a disputa sobre a soberania de Essequibo, território que a Venezuela diz ser seu desde o século 19, fazendo parte da confusão territorial decorrente da divisão colonial da costa caribenha da América do Sul.
Em 1899, um laudo internacional decretou que a região integrava a então Guiana Britânica, ou Guiana Inglesa. Em 1948, os venezuelanos iniciaram uma campanha denunciando o laudo como fraudulento e, em 1966, assinaram um acordo com Londres visando resolver a situação.
Diferentemente do que diz a propaganda da ditadura de Nicolás Maduro, o dito Acordo de Genebra não decretou que o laudo era uma fraude, mas aceitou a queixa venezuelana, assim como a promessa britânica de negociar os limites territoriais.
Mas meses depois da assinatura, a Guiana tornou-se independente, o que arrastou as negociações. Um congelamento do conflito durou de 1970 a 1982, quando a Venezuela resolveu renegar o acordo em curso e voltar para os termos de 1966. O caso acabou remetido para a ONU.
Ninguém deu muita bola para Essequibo, uma região quase toda de selva com potenciais jazidas minerais importantes, até 2015, quando a petroleira ExxonMobil achou reservas gigantes de petróleo longe de sua costa.
O fator econômico pesa. Os esparsos moradores de Essequibo, oficialmente 120 mil mas talvez até 200 mil e 80% deles na costa, passaram a vislumbrar uma prosperidade antes inaudita. Com o avanço da extração, o PIB da Guiana deu saltos. De 2021 para 2022, segundo o Banco Mundial, ele subiu 63% em termos reais, e em 2023 está em US$ 15,3 bilhões.
Em dezembro do ano passado, Georgetown elaborou uma lista de 11 campos petrolíferos costeiros e 3, de águas profundas, para serem licitados.
Caracas então apontou para o que chamou de neocolonialismo de seus rivais americanos e passou a pressionar novamente por uma solução. A ONU então designou a Corte de Haia para resolver o caso, mas os venezuelanos não a aceitam.
Com o impasse e a reafirmação da corte sobre sua jurisdição neste ano, Maduro decidiu marcar um referendo com cinco perguntas, todas enviesadas em favor de um "sim" para a visão de seu governo, sobre Essequibo ser declarado um estado venezuelano e seus habitantes, cidadãos de Caracas, além de pontos como o rechaço à Corte de Haia.
Segundo a reportagem ouviu de diplomatas e militares, há duas possibilidades na mesa. Ou o ditador quer aumentar seu cacife político inflando uma crise, como já fez antes com a vizinha Colômbia, ou há o risco de uma ação militar entre uma potência regional razoável e um país que tem seis blindados leves, 54 peças de artilharia, cinco barcos costeiros e oito helicópteros.
Na primeira hipótese, vista como mais provável, a questão é a pressão sobre Maduro para permitir que as eleições de 2024 tenham candidatos da oposição --muitos estão barrados pelas cortes dominadas pelo governo, inclusive a eventual presidenciável María Corina Machado.
Na segunda, a situação é complexa pelo risco de escalada e pelo fato de que uma ação militar afetaria o Brasil. Como quase todo o território de Essequibo é inacessível, de floresta fechada, um movimento que incluísse blindados teria de dar a volta por Roraima, que faz fronteira ao sul.
Há alternativa, como desembarques anfíbios na costa ao norte e ações aerotransportadas, o que já gerariam problemas como o eventual fluxo de refugiados. Mas é o risco fronteiriço que mais assusta observadores da situação.
Contra a hipótese há o fato de que Maduro é um aliado do presidente Lula e próximo do PT. Ninguém antevê um conflito real entre os países, mas o risco de a situação sair do controle sempre existe.
Daí o sinal da Defesa. Como a Folha de S.Paulo mostrou, na semana passada uma delegação venezuelana em Brasília impressionou negativamente as autoridades brasileiras pelo tom com que falou sobre Essequibo, sugerindo a possibilidade de Maduro ir às vias de fato.
Também esteve no Brasil para esse encontro militar o chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa da Guiana, Omar Khan. A mídia de seu país disse que o encontro foi "além de temas de rotina". Ele comanda meros 3.400 homens, a maioria policiais, enquanto a Venezuela tem 123 mil militares armados ao longo dos últimos anos pela Rússia e pela China, rivais dos Estados Unidos.
A movimentação venezuelana fez também com que a Guiana apelasse aos EUA, principais beneficiários até aqui da exploração das jazidas estimadas em 11,2 bilhões barris de petróleo --quase o tamanho da brasileira, 14,9 bilhões de barris.
O vice-presidente, Bharrat Jagdeo, anunciou que receberia uma delegação do Departamento de Estado antes do referendo de domingo. "Todas as opções estão na mesa", afirmou o político. Com Israel-Hamas tirando a atenção do Ocidente da Ucrânia, não cairia mal para Moscou uma crise militar no quintal dos EUA.
Para Lula, é um grande problema político. Ele é defensor contumaz da ditadura chavista de Maduro, que considera um regime democrático apesar de os controles sobre Judiciário e Legislativo que a tornaram na prática um Estado autoritário pleno, em 2017.
O petista recebeu neste ano Maduro, que tem tratamento de pária em alguns países da região, como o Chile. O acirramento da tensão com a Guiana levou o assessor presidencial Celso Amorim, ex-chanceler, a Caracas para discutir o caso.