Muitos países hoje flertam com 'Guantánamos light', diz ex-relatora da ONU

Por FERNANDA PERRIN

BASE DE GUANTÁNAMO, EUA (FOLHAPRESS) - Um dos motivos pelos quais a cobrança internacional diminuiu em relação à atuação americana na Guerra ao Terror é porque, hoje em dia, muitos países flertam com uma espécie de "Guantánamo light", afirma Fionnuala Ní Aoláin, relatora especial da ONU de 2017 a 2023 para promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais no combate ao terrorismo.

A irlandesa foi a primeira investigadora independente das Nações Unidas autorizada pelos Estados Unidos a entrar na prisão na base militar americana em Cuba em 21 anos. A visita ocorreu em fevereiro do ano passado.

"Particularmente na América Latina, países lidam com problemas como crime organizado e pensam em detenção em massa, frequentemente com proteções ao devido processo legal muito, muito frágeis. Ninguém quer levantar muito o tema de Guantánamo [contra os EUA] num ambiente assim," diz a professora de direito à Folha de S.Paulo.

Fionnuala cita como exemplo El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele, recentemente reeleito, lançou uma enorme operação de encarceramento em massa para combater a criminalidade. O país tem mais de 100 mil presos -em grande parte inocentes, segundo diversas organizações de direitos humanos.

Outro motivo para o silêncio internacional sobre a sobrevivência da prisão é que muitos países não querem arriscar sua relação com os EUA, afirma Fionnuala. As exceções, justamente, são aqueles que têm um interesse geopolítico em criticar Washington, como China e Rússia, que tampouco são autoridades morais em direitos humanos, e Cuba, onde a base militar é localizada em razão de um acordo fechado muito antes de o atual regime ter sido instaurado por Fidel Castro.

Mesmo os países de origem dos detentos, em muitos casos, deixaram de lado seus cidadãos, diz a ex-relatora da ONU. O Iêmen, por exemplo, terra natal de 16 deles, está em guerra.

"Isso mostra o quão descartáveis são esses homens, que não são vistos como importantes geopoliticamente. São pessoas comuns que foram pegas no meio da situação. Ninguém tem interesse em defendê-los", afirma Fionnuala.

Sua visita a Guantánamo foi resultado de quase dois anos de negociação com o governo americano; desde 2002 organismos da ONU tentavam acessar a prisão. Para ela, uma das razões de finalmente ter obtido a autorização é que isso tornou-se do interesse até dos EUA -ao menos, do atual governo.

"Acredito que em parte foi uma tentativa de usar a pressão de uma visita para ajudar a construir um impulso para mais transferências e, em última instância, o fechamento da prisão", avalia.

Ao longo de seu mandato como relatora especial, Fionnuala conta que visitou diversas prisões e conversou com muitos condenados ou acusados de terrorismo. Guantánamo a impressionou pela escala do dano psicológico sofrido por seus detentos, diz.

Antes de ir à prisão, ela e sua equipe fizeram treinamentos com organizações de sobreviventes de tortura. "Sua responsabilidade básica é não fazer mais mal a esses homens, porque você aparece lá com um colete da ONU e, quando isso acontece, às vezes as pessoas acham que o problema delas está resolvido, que eles vão sair de Guantánamo na manhã seguinte", diz.

Segundo ela, a primeira pergunta que ouviu da maior parte dos detentos foi: por que você não veio antes? "A magnitude do sofrimento e o sentimento de abandono deles são realmente profundos."

Fionnuala afirma que os detentos têm uma compreensão sofisticada do que aconteceu com eles, e sentem "o desespero consequência disso". Ela diz que a situação é mais difícil para aqueles que foram liberados para transferência, mas continuam presos - é o caso de 16 dos 30 restantes.

Um dos principais pontos do relatório produzido por ela são as necessidades médicas dos detentos, tanto porque convivem com sequelas físicas e psicológicas da tortura como porque estão envelhecendo prematuramente na prisão -resultado dos abusos sofridos, afirma.

Por isso, uma das recomendações aos EUA foi a criação de um programa específico para reabilitação de sobreviventes de tortura. Esse pedido também foi feito por advogados dos acusados do 11 de Setembro nas negociações de um acordo com a Procuradora, mas rejeitado pelo governo Biden.

Em resposta ao relatório, os EUA afirmaram que discordam de muitas das afirmações feitas por Fionnuala. "Nós estamos comprometidos com o provimento de tratamento seguro e humano aos detentos de Guantánamo, em conformidade total com o direito dos EUA e internacional", afirma o governo americano em carta submetida à ONU. "Os detentos vivem em comunidade e preparam refeições juntos, recebem cuidados médicos e psiquiátricos especializados, possuem acesso total a advogados e se comunicam regularmente com familiares."