Quilombolas festejam Censo e cobram mais políticas públicas
CABO FRIO, RJ - (FOLHAPRESS) - O clima era de festa na manhã ensolarada desta quarta-feira (17) no quilombo Maria Joaquina, em Cabo Frio (RJ), a cerca de 160 km da capital fluminense.
Em um salão com aproximadamente 30 pessoas, parte sentada em cadeiras de plástico, uma caixa de som animava o ambiente com pagode por volta das 11h. Uma mesa também foi montada pelos moradores com bebidas, bolos, frutas e outros lanches para receber o público no espaço, cujo acesso é feito por uma estrada estreita de terra batida.
A celebração não era à toa. Pela primeira vez um Censo demográfico vai fazer a contagem da população quilombola no Brasil. A edição deste ano marca os 150 anos do primeiro recenseamento feito no país, em 1872.
O Maria Joaquina foi um dos endereços escolhidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para o lançamento da coleta das informações em comunidades quilombolas, nesta quarta-feira.
Moradores do local dizem esperar que a contagem traga avanços e que os dados em apuração sirvam para colocar os quilombolas no centro de mais políticas públicas.
"O Censo é a chave para dizer que ainda estamos aqui, para dizer quantos somos e quem somos", afirmou a líder quilombola local, Rejane Maria de Oliveira, 47, durante o evento. "Não podemos mais aceitar o que tem acontecido, o racismo, a homofobia. Combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer", emendou.
Os quilombos reúnem descendentes de escravos e viraram símbolo da resistência contra a escravidão.
"A sociedade não entende a comunidade quilombola, não entende o modo de vida quilombola. Muitos dos nossos morreram em navios", apontou Rejane.
O Censo Demográfico mais recente ocorreu em 2010. Até então, os quilombolas eram contabilizados somente na estimativa geral da população feita pelo IBGE.
Na edição deste ano, houve a inclusão da seguinte pergunta nos questionários: "Você se considera quilombola?". Em caso positivo, o entrevistado pode responder, na sequência, qual é a sua comunidade.
Além de apurar quantos são e onde vivem os quilombolas, o IBGE pretende levantar detalhes sobre esses brasileiros em áreas como trabalho, renda, educação e saúde.
Um pré-mapeamento do instituto indicou 5.972 localidades quilombolas espalhadas pelo país.
"Com o Censo, esperamos ser visualizados. Quem não é visto, não é lembrado", disse Roberto dos Santos, 66, que vive em uma área quilombola no município de São Pedro da Aldeia e foi até a celebração na vizinha Cabo Frio.
Em um discurso no local, Santos afirmou que contemplar os quilombolas em políticas públicas "não é um favor", e sim "um direito".
Mãe de cinco filhos, Geovana Maria Antonio de Oliveira, 36, mora no quilombo Maria Joaquina desde a infância e conta que espera a chegada dos recenseadores do IBGE.
"O Censo é importante para reconhecer a nossa história. A nossa história não pode ser renegada", disse.
As entrevistas do Censo 2022 começaram nos municípios brasileiros em 1°de agosto. A coleta das informações deve ser concluída até o final de outubro.
"É um norte histórico. Pela primeira vez vamos contar a população quilombola declarada. Antes, essa parcela era contada no geral da população", indicou Luciano Duarte, coordenador técnico do Censo, que também esteve em Cabo Frio.
O IBGE afirma que os recenseadores que visitarão as áreas quilombolas receberam um dia adicional de treinamento, a fim de preparar os agentes para a abordagem.
João Gabriel da Costa de Souza, 23, é um desses recenseadores.
"Quis trabalhar no Censo em áreas quilombolas para conhecer melhor essa cultura, esse povo. É uma experiência", relatou o morador de Búzios (RJ). Ele já está em atuação no quilombo Maria Joaquina.
Caso seja necessário, Souza poderá contar com o apoio de Clara Oliveira Monteiro, 20. Ela é moradora da comunidade e vai atuar como guia dos recenseadores. "A contagem no Censo é muito importante, porque estamos sendo reconhecidos", afirmou.
Para definir as comunidades quilombolas, o IBGE segue as diretrizes de decreto sobre o tema: "Comunidades quilombolas são grupos étnicos, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão historicamente sofrida", apontou o instituto.
O Censo, que costuma ser realizado a cada dez anos, é considerado o trabalho mais detalhado sobre os traços demográficos e socioeconômicos dos brasileiros.
A nova pesquisa estava prevista para 2020, mas foi adiada em razão das restrições provocadas pela pandemia de Covid-19. Em 2021, o que inviabilizou o levantamento pelo segundo ano consecutivo foi o corte da verba pelo governo federal. O orçamento para o estudo em 2022, estimado em R$ 2,3 bilhões, só foi liberado após o STF (Supremo Tribunal Federal) ser acionado.