Favela na Grande SP ganha cabine de telemedicina com exames e consultas virtuais

Por CLÁUDIA COLLUCCI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Enzo, filho de Rita de Cássia Santos, 31, completou um ano no mês passado, mas, desde o nascimento, só passou pelo médico uma única vez, aos três meses. "Vou cedo para pegar ficha [para a consulta], fico na fila, mas, quando chega a minha vez, já acabou", diz.

Marlene Santos, 55, mãe de Rita, também espera há três meses um retorno com o médico para levar exames sorológicos feitos em maio. "Tenho diabetes e problemas de tireoide, mas não tava tomando remédio porque no posto nunca tem. Agora, consegui o da tireoide", conta.

Ambas moram na Favela dos Sonhos, uma comunidade com 200 famílias -cerca de 800 pessoas- em Ferraz de Vasconcelos (Grande SP), que acaba de ser integrada a um projeto inédito de atenção primária à saúde (APS) desenvolvido pelo Grupo Fleury, a ONG Gerando Falcões e a prefeitura de Ferraz.

A iniciativa faz parte do programa Favela 3D, desenvolvido pela Gerando Falcões, que tem como objetivo "transformar as favelas em ambientes dignos, digitais e desenvolvidos". A ONG desenvolve outras ações no local, como construção de casas de alvenaria, colocação de piso nas ruas, instalação de luz elétrica e busca formas de geração de rendas, todas com parcerias privadas e apoio da prefeitura local.

O projeto de atenção primária em Ferraz, lançado na última segunda (15), tem formato "figital" (físico com o digital). As consultas vão acontecer em uma cabine de telemedicina, instalada ao lado da sede comunitária. Uma técnica de enfermagem atuará presencialmente, anotando as queixas clínicas, aferindo a pressão arterial, temperatura, verificando o peso para, depois, repassar os dados ao médico de família que estará na tela do tablet.

O serviço conta com um aparelho chamado TytoCare, que permite ao médico a ausculta cardíaca e pulmonar, avaliar da garganta e ouvido, ouvir sons estomacais e gastrointestinais, verificar imagens de pele, temperatura corporal e frequência cardíaca. Tudo a distância e em tempo real.

Ao final, se necessário, o paciente receberá prescrições de medicamentos e de exames com certificação digital, que serão validados na UBS da região, conforme acordo feito com prefeitura.

"A gente vai fazer as coisas mais simples. Mas já temos uma conexão com a Secretaria Municipal da Saúde para que, nas situações de necessidade de encaminhamento, ela dê continuidade ao cuidado. A ideia é fazer o acolhimento e o acompanhamento das pessoas da comunidade, como os doentes crônicos e as crianças", diz a médica Jeane Tsutsui, presidente do Grupo Fleury.

Mas, segundo ela, as equipes do Fleury e da Gerando Falcões também estarão atentas às necessidades da comunidade para, eventualmente, criar ações específicas, como encaminhamento a especialistas e acompanhamento da saúde mental.

O mesmo modelo de APS, com cabine de atendimento físico e digital, será implantado na Favela Marte, em São José do Rio Preto (SP), a partir de 2023.

A unidade de saúde da família mais próxima da Favela dos Sonhos é a UBS Jardim São Lazaro, a um 1 km. Segundo Edu Lyra, fundador e CEO da Gerando Falcões, a falta de médicos é a principal queixa dos moradores na área da saúde. "As pessoas vão ao posto, a fila é muito grande para tudo. Muitas vezes, é um atendimento que não precisa de fila, a telemedicina resolve."

Romero Lima, coordenador-executivo de Secretaria da Saúde de Ferraz de Vasconcelos, confirma que a falta de médicos é um grande gargalo. "A região é bastante carente, a equipe que temos é insuficiente para assegurar atenção adequada." Ele afirma que a prefeitura estará comprometida em dar continuidade aos atendimentos.

Na região em que a favela está localizada, são 25 mil pessoas vinculadas à UBS. A unidade tem quatro equipes de saúde da família, além de 13 agentes comunitários.

O aposentado Amaro Mariano da Silva, 63, foi o primeiro morador a se consultar na cabine. "Falei tudo o que o médico perguntou direitinho. Tem gente que mente pro médico, mas eu acho que a gente tem que falar a verdade."

A única queixa, segundo ele, é a "vista embaçada", o que vai demandar uma consulta no oftalmologista e exames sorológicos.

O médico de família André Cassias, gerente de atenção primária digital do Fleury, conta que os moradores foram consultados antes de se decidir pelo formato do atendimento na favela e que foi decisão deles a opção pelo modelo de atenção primária.

Segundo ele, os primeiros seis meses servirão de termômetro para as necessidades de saúde dos moradores, mas a expectativa é de que 80% das demandas sejam atendidas pelo projeto.

Pedro Mendonça de Oliveira é o médico de família responsável pelo atendimento virtual de toda a favela. Para ele, é muito importante o projeto estar dentro de uma iniciativa maior, que olha para outros determinantes sociais de saúde, não apenas para sintomas, diagnósticos e tratamentos.

"As pessoas adoecem muito em razão das condições de vida que têm. E se eu não prestar atenção para essa realidade, vou continuar enxugando gelo, independentemente do acesso às inovações tecnológicas."