Entenda como a viagem de Lina Bo Bardi pela Itália do pós-guerra mudou sua obra

Por GUSTAVO ZEITEL

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - É irônico, senão inútil, trabalhar com arquitetura numa guerra. Em 1943, Lina Bo Bardi, então Lina Bo --ela só se casaria com Pietro Maria Bardi, de quem pegou o sobrenome, três anos depois-- , morava em Milão, uma cidade onde nada se erguia. A Itália estava em ruínas, bombardeada pelos Aliados, que faziam uma ofensiva contra o regime fascista. Bo Bardi sobrevivia trabalhando para algumas revistas, exercendo funções que iam da diagramação à reportagem.

Existir era uma incerteza. No mesmo ano, ela chegou a ser editora da revista Domus e viu toda a Redação ser destruída por um ataque aéreo. Benito Mussolini, o "Duce", só morreria dois anos depois, e o verão de 1945 trouxe, enfim, a promessa de uma Europa pacífica. Em julho daquele ano, Bo Bardi fez uma viagem pela Itália, ao lado do também arquiteto Carlo Pagani e do fotógrafo Federico Patellani.

"Era a primeira vez que as crianças podiam sair às ruas para brincar sem terem medo de bombas", diz Francesco Perrota-Bosch, curador de "O Verão de 1945 na Itália: A Viagem de Lina Bo nas Fotografias de Federico Patellani". A exposição será aberta agora, no Instituto Italiano de Cultura, reunindo 45 fotografias, que documentam a viagem dos três amigos.

Perrota-Bosch descobriu as imagens enquanto fazia a pesquisa para o livro "Lina: Uma Biografia", lançado no ano passado pela editora Todavia. A viagem de 1945 permanecia até então um mistério, sobretudo pela ausência de registros documentais do momento. Ele soube, porém, que o arquivo de Patellani estava sob a guarda do Museu de Fotografia Contemporânea de Cinisello Balsamo, uma pequena cidade do norte da Itália com cerca de 72 mil habitantes.

Perrota-Bosch para lá rumou. Isso porque, segundo ele, a viagem no verão de 1945 é um episódio central para se compreender a trajetória da arquiteta, responsável pelos projetos do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, e do Sesc Pompeia.

"Vi centenas de fotos e caí para trás, sabia que outras pessoas deviam ver o que eu encontrei", ele conta. "Acho que a Lina teve um entendimento da cultura brasileira, sobretudo da nordestina, muito particular, e isso se deve ao fato de ela ter vivido todas as dificuldades da guerra."

Na época, as reportagens de Bo Bardi não se destinavam a arquitetos. Os textos ofereciam soluções domésticas para mulheres, que ficavam sozinhas em casa, enquanto os maridos lutavam nas frentes de combate.

Dessa vez, porém, o trio havia se reunido para mostrar as condições de habitação na Itália no pós-guerra imediato. Bo Bardi e Pagani assinariam juntos o texto, encomendado por uma das revistas da época. Patellani tiraria as fotos para compor o relato. Precursor do fotojornalismo moderno, ele já havia, em 1935, fotografado, com uma Leica, as campanhas do exército italiano na África Oriental, tendo documentado também a própria Segunda Guerra Mundial, atuando na frente russa do combate.

No ensaio "O Jornalista: Nova Fórmula", de 1943, ele expôs os ideais de seu ofício, "apreender a atitude momentânea" e o "essencial de tudo". "Devemos renunciar a beleza pela utilidade", escreveu. Patellani ainda trabalhou no cinema, chegando a frequentar sets de filmagens de produções do neorrealismo italiano.

Na Itália, há um divertido debate que indaga se o movimento empreendido por Vittorio De Sica e Roberto Rosselini teve aplicação na fotografia. Alguns críticos afirmam que o neorrealismo só existiu com a imagem em movimento, jamais parada. Para Perrota-Bosch, as fotos presentes em "O Verão de 1945 na Itália" dialogam com a estética dos filmes da época.

"Patellani sempre foi a figura central nessa polêmica. Ele dá atenção a ambientes urbanos que não estão ligados ao centro histórico, assim como os filmes do neorrealismo fizeram", ele destaca.

O roteiro da viagem começou por Milão, onde Bo Bardi morava. Na maior cidade do norte da Itália, eles visitaram o bairro Baia del Re. Numa das fotos, a arquiteta aparece sorrindo, com feição generosa, marchando lado a lado com meninos que, de suspensórios e bermudas, pareciam exultantes, como se aquele 12 de julho fosse a data de uma festa popular.

Fica evidente que a jovem arquiteta comungava do espírito do momento, tanto que, em um retrato, ela aparece radiante, usando um vestido florido, com as mãos na cintura. As fotos de Patellani transmitem ao espectador o mesmo paradoxo dos filmes do pós-guerra. Se miséria e destruição são temáticas estruturais das imagens, o lirismo está por toda a parte, inclusive na forma. Talvez por isso os entusiastas da estética neorrealista concebam hoje o período com uma espécie de nostalgia absurda.

É verão, os dias são quentes, as pessoas ocupam a malha urbana, faz sol. A luz é inclemente e corta as imagens em diferentes planos. O contraste também está na senhora que, com poucos dentes, sorri ao lado de sua galinha. Ainda em Milão, os três vão até os "barracopoli", nome em italiano para as favelas. Lá, constatam a precariedade de construções, em que pisos se convertiam em paredes e tendas de saco de estopa abrigavam idosos.

Descendo a Península Itálica, os viajantes fizeram fotos em Marzabotto, onde nazistas assassinaram 770 pessoas, e encontraram uma Florença arrasada. Já as imagens de Radicofani trazem símbolos da guerra, expostos na concretude de um tanque abandonado em campo aberto ou num cemitério lotado de covas. Em Buoncovento, Bo Bardi aparece em cima de um carro preto, tentando enxergar pássaros em gaiolas.

Na região do Lácio, Valmontone deu a Patellani algumas das cenas mais palpitantes do percurso. Um menino guarda seu livro escolar em um porta-munição, a igreja de Santa Maria-Maggiore aparece como único edifício em meio aos escombros, crianças brincam sob a luz celestial.

Por fim, os três chegaram a Roma, também destruída, onde Bo Bardi subiu num barranco na Praça Augusto Imperatore, que acumulava as funções de sítio arqueológico e lixão. Com o mesmo vestido florido, ela ainda posou para um retrato, com o olhar enigmático, deixando entrever a consciência de ser fotografada. "O que ela chamava de pré-artesanato ela já tinha encontrado no pós-guerra", diz Perrota-Bosch.