'Pandemia só chegará ao fim se tivermos vigilância ativa', diz o novo diretor-geral da Opas
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Parafraseando o escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014), o médico pernambucano Jarbas Barbosa da Silva Júnior, 65, eleito o novo diretor-geral da Opas (Organização Pan-americana de Saúde), se diz um "realista esperançoso" quando questionado sobre os rumos da saúde brasileira após as eleições presidenciais deste domingo (2).
"Espero que a visibilidade que o setor da saúde alcançou durante a pandemia de Covid-19 se reflita em políticas para fortalecer o sistema de saúde", diz ele em entrevista à Folha de S.Paulo. Barbosa ocupa o cargo de diretor-assistente da organização e toma posse do novo cargo no dia 1º de fevereiro de 2023.
Para o médico, é preciso que o país aumente o financiamento em saúde, tenha uma atenção primária à saúde fortalecia e bem treinada e melhore o arcabouço legal para que os bons acordos regionais de municípios para o financiamento de serviços de saúde de média e alta complexidade não terminem a cada troca de gestão.
Na opinião dele, a crise sanitária mostrou que, para enfrentar as inúmeras desigualdades de saúde, é preciso que os países usem a "lente da equidade" em todos os programas da área, identificando e derrubando as barreiras. "Os mais pobres tiveram mais risco de adoecer e de morrer porque têm doenças crônicas não controladas, chegam mais tarde aos serviços de saúde", diz Barbosa.
PERGUNTA - Faltaram propostas concretas dos candidatos para os inúmeros desafios da saúde, a área que mais preocupa a população. Na sua opinião, quais são as questões chaves a serem enfrentadas?
JARBAS BARBOSA - Eu sou um realista esperançoso, como diria meu conterrâneo de coração [Ariano Suassuna, que nasceu na Paraíba, mas viveu em Pernambuco a maior parte da vida]. Espero que a visibilidade que o setor saúde alcançou durante a pandemia de Covid-19 se reflita em políticas para fortalecer o sistema de saúde.
Temos um financiamento que precisa melhorar. Sistemas federados, como o brasileiro e de outros países nas Américas, precisam ter uma boa definição de papéis e uma boa negociação sobre responsabilidade dos três níveis [União, estados e municípios].
No Brasil, alguns serviços de média e alta complexidade só são efetivos se forem regionais. Falta um arcabouço legal, de forma permanente, para que as boas negociações que os municípios fazem persistam. Às vezes, você tem um grupo de municípios que faz um bom acordo para financiar conjuntamente um serviço de câncer, por exemplo, mas mudam as gestões e tudo começa do zero.
É fundamental uma atenção primária fortalecida e recursos humanos treinados. É um grande desafio. Não temos uma formação forte para que médicos e enfermeiros possam fazer esse trabalho. Apesar dos desafios, as pessoas passaram a reconhecer e valorizar o SUS na pandemia.
P.- Ainda assim, o orçamento da Saúde para 2023 deverá ser o menor dos últimos dez anos, há cortes previstos em vários programas. Como conciliar essa redução de recursos dentro de um cenário de tantas demandas?
JB- Espero que isso mude. A peça orçamentária ainda vai para debate no Parlamento, e a gente espera que se leve em conta as lições que a pandemia deixou, entre elas a de que precisamos responder à situação atual e aos desafios futuros.
P.- Recentemente, a OMS declarou que estamos perto do fim da pandemia. Há indicadores específicos para encerrar esse estado de emergência mundial?
JB- A OMS ainda está debatendo quais seriam os indicadores para considerá-la terminada. A questão é que a pandemia ainda não terminou. Para concluir essa última etapa, a gente precisa manter uma vigilância muito atenta, inclusive, vigilância genômica. Enquanto o vírus circular, podem surgir novas variantes.
Também precisamos reforçar a vacinação, especialmente naqueles grupos que precisam mais, como idosos, pessoas com problemas no sistema imunológico, doenças crônicas. E, terceiro, precisamos garantir o acesso aos antivirais. Nós já temos antivirais efetivos, mas o preço é muito caro. Estamos buscando fazer uma negociação coletiva para baixar o preço.
Se a gente conseguir essas três coisas e não surgir uma nova variante que mude o jogo, poderemos estar a alguns meses de transformar a pandemia em uma endemia.
P.- Parece não haver dúvidas de que novas epidemias virão. Os países aprenderam alguma lição com a Covid-19 no sentido de prevenir as próximas?
JB- Não sabemos quando e nem com que gravidade, mas sabemos que vai acontecer. A preparação tem que caminhar em dois pilares. Primeiro, no fortalecimento de uma melhor governança global, por exemplo, um mecanismo de acesso equitativo às vacinas. Tem que ter uma regra de dividir a produção de vacinas. Os países ricos, como vimos na pandemia, tiveram acesso muito rápido [aos imunizantes] e numa quantidade muito maior.
O segundo pilar é a preparação de cada país para identificar rapidamente os novos vírus e contê-los. A pandemia mostrou que, além de ter laboratórios com capacidade básica de fazer testes, por exemplo, precisamos de um mecanismo capaz de ampliar rapidamente essa capacidade. O mesmo para leitos hospitalares, de UTI, produção de vacinas, medicamentos e insumos estratégicos.
P.- A pandemia agravou muitas das desigualdades em saúde. Como enfrentá-las?
JB- Na pandemia, os mais pobres tiveram mais risco de adoecer e de morrer porque têm doenças crônicas não controladas e chegam mais tarde aos serviços de saúde. Nós precisamos ter a lente da equidade em todos os programas de saúde que a gente desenvolve.
Mesmo em sistemas de saúde de acesso universal e gratuito, como o SUS brasileiro, as barreiras econômicas, sociais e culturais impedem alguns grupos de terem acesso efetivo à saúde. Temos que ter estratégias para identificar e superar essas barreiras. Por exemplo: o que faz com que as populações mais pobres não se vacinem? É por que o posto está muito longe, não abre no fim de semana?
P.- Qual o caminho para aliviar a crescente carga de doenças crônicas não transmissíveis na saúde pública, que deve piorar com o envelhecimento populacional?
JB- De cada cem pessoas com hipertensão na América Latina e no Caribe, só 50 sabem que têm o problema e só em 25 delas ele está controlado. Se não tivermos uma atenção primária fortalecida e preparada para diagnosticar e tratar hipertensão, diabetes, fazer diagnóstico precoce de câncer, vamos continuar tendo essa situação inadmissível: 30% das mortes por doenças não transmissíveis são mortes preveníveis.
A atenção primária foi pensada 40 anos atrás muito focada na saúde da criança e da mulher. É importante manter isso, mas se não incorporar as doenças crônicas não transmissíveis, alguns hipertensos são vão descobrir a condição quando tiverem um AVC [acidentes vascular cerebral]. Algumas pessoas com diabetes só vão descobrir quando começarem a ter falha renal.
P.- Há uma queda dramática nas taxas de vacinação infantil no Brasil e um temor de que o país volte a registrar casos de poliomielite. Como enfrentar esse desafio?
JB- Os programas de vacinação precisam se modernizar. Em vários países, a gente não sabe, por exemplo, qual é a cobertura vacinal de cada bairro de uma metrópole, como São Paulo. Você ter a cobertura média do município não quer dizer nada. Ela pode ser boa, de 90%, 95%, mas os não vacinados podem se concentrar em determinadas áreas mais pobres ou mais violentas. Temos que ter informação de pessoas vacinadas e não de doses administradas.
Também precisamos identificar as barreiras. Quando a gente pega a população pobre no Brasil e na América Latina, 50% dos lares só têm um adulto com renda e esse adulto é uma mulher. Isso significa que essa mulher precisa perder de 10 a 12 dias de trabalho [por ano para vacinar o filho] se o posto não abrir no fim de semana, à noite. Não podemos ficar com aquela estratégia antiga, do tempo em que a mulher não trabalhava.
Precisamos também melhorar as estratégias de comunicação que envolvam os profissionais de saúde, informá-los como é registrada uma vacina, como é feito o processo de certificação, da segurança e da qualidade. Fizemos uma pesquisa no Caribe durante a pandemia. E 30% das enfermeiras não queriam ser vacinadas para a Covid.
E, por último, mas não menos importante, tem que ter engajamento de lideranças políticas, religiosas, comunitárias. A gente tem que reposicionar o programa de imunizações [PNI]. É um programa que teve muito sucesso, mas, às vezes, por isso mesmo, tem uma certa dificuldade de adaptar, de inovar e incorporar novas estratégias.
P.- É só falta informação aos profissionais de saúde ou também é uma questão ideológica?
JB- São as duas coisas. Existem antivacinas, mas todos estimam que se trata de um grupo pequeno, no máximo 1,5% da população. Mas tem um outro grupo que pode variar de 15% a 20% que querem mais informação. Então, aquelas campanhas de comunicação do passado, que eram mais para avisar o momento de vacinar, não funcionam mais.
O que está ao nosso alcance é trabalhar o tema da informação. É muito importante a participação das sociedades de especialistas, que as escolas de medicina e enfermagem tenham a carga necessária de informações sobre evidências científicas e que a formação seja continuada. Todo profissional precisa ser atualizado de acordo com que a gente está observando no momento.
P.- A saúde mental tem sido uma das áreas mais negligenciadas da saúde pública. O que é preciso fazer para mudar esse cenário?
JB- A Opas estabeleceu uma comissão de alto nível, com especialistas de vários países, que vai apresentar um diagnóstico da situação e um conjunto de recomendações em janeiro de 2023.
São recomendações amplas, começam na comunidade, como foco na prevenção. Também passam pela atenção primária, que tem que estar preparada para identificar um caso de depressão, abuso de droga, e oferta de serviços especializados, de emergência, quando necessários. O Brasil tem os agentes comunitários, já existem experiências interessantes, mas isso transformado em uma estratégia dentro do SUS, o país pode ter um modelo extremamente positivo de uma atenção da saúde mental.
RAIO-X
Jarbas Barbosa, 65
Formado em medicina pela Universidade Federal de Pernambuco e especializado em saúde pública e epidemiologia na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tem mestrado em ciências médicas e doutorado em saúde pública pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Foi diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de julho de 2015 até julho de 2018. Antes, atuou no Ministério da Saúde como secretário de Vigilância em Saúde e, depois, como secretário de Ciência, Tecnologia e Suprimentos Estratégicos. Atualmente ocupa o cargo de diretor assistente da Opas