Por que os estados mais indígenas do Brasil não elegem indígenas voltados à causa ambiental

Por ROSIENE CARVALHO

MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - Nas últimas eleições, os moradores do Parque das Tribos, primeiro bairro indígena de Manaus, puderam votar pela primeira vez na própria comunidade. O local foi ocupado em 2014 e desde então as moradias ainda apresentam problemas de infraestrutura. Atualmente vivem no lugar 5.000 pessoas que falam línguas de 20 etnias.

O casal tikuna Regina Mariano, 24, e Jeckson Pereira, 30, foi acompanhado dos filhos de seis e dois anos no primeiro turno. Na saída da seção, Jeckson afirmou que o voto para deputado federal foi num indígena, mas ignorava que havia um "parente" na disputa pelo governo do Amazonas (Israel Tuyuka, do PSOL) e em outras vagas. "Se soubesse, eu votaria. Não sabia."

As crianças brincavam com os santinhos jogados no chão e falavam na língua indígena, sendo possível identificar o nome "Bolsonaro" na conversa. Jeckson respondeu em português, de olho fixo no rosto dos filhos, que o presidente é muito preconceituoso com os indígenas.

A família tikuna está há poucos meses em Manaus e diz buscar melhores condições de vida. O pai se queixa da falta de oportunidades para que os indígenas tenham vida digna sem ter de deixar seus locais de origem. "Para mim, não tem proposta para os indígenas", afirmou.

A última eleição foi recordista em candidatos indígenas. Por outro lado, os estados da Amazônia, com a maior população indígena do Brasil, não elegeram representantes indígenas que tenham pauta de proteção do meio ambiente e dos direitos dos povos originários.

De acordo com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em todo o país, foram 186 candidatos autodeclarados indígenas. Em 2018 e 2014, respectivamente, eram 133 e 85.

Dos sete autodeclarados indígenas eleitos no Brasil, duas têm atuação na defesa ambiental e nos direitos indígenas, mas não foram eleitas por quem vive na Amazônia. Célia Xakriabá chegou ao mandato pelo PSOL de Minas Gerais e Sonia Guajajara, que é do Maranhão, foi eleita pelo PSOL de São Paulo.

A segunda deputada federal indígena da história do país, Joenia Wapichana (Rede-RR), não se reelegeu ?o primeiro foi Mário Juruna, eleito pelo PDT do Rio de Janeiro em 1982. A única indígena eleita para o Congresso com votos na Amazônia foi a bolsonarista Silvia Waiãpi (PL), do Amapá.

Levantamento da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) mostra que, das 85 candidaturas indígenas nos estados da Amazônia Legal em 2022, 47 concorreram por partidos de direita e centro e 38 por partidos do campo progressista.

Os eleitores da Amazônia deram a maioria de suas vagas na Câmara para partidos de centro e direita: MDB, PL, União Brasil e Republicanos foram os mais votados na região Norte e em Mato Grosso. O MDB ocupará 17 das 73 vagas de deputado federal desses estados. A vantagem da sigla veio do Pará, que reelegeu o emedebista Helder Barbalho ao governo.

O segundo lugar é dividido entre o PL do presidente Bolsonaro e o União Brasil com 15 federais cada um.

PL e União Brasil foram os que mais elegeram senadores na Amazônia. Dois, cada um, o que representa mais de 50% das vagas.

Essas siglas aparecem entre as que atuaram, em votações no Congresso, com maior contundência contra os direitos dos povos originários, segundo levantamento feito pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) em setembro deste ano. O trabalho analisou votações entre 2012 e 2021.

A ausência da pauta ambiental e indígena tem ressonância nas assembleias legislativas eleitas na Amazônia. Nos estados do Norte e em Mato Grosso, não há frentes parlamentares estaduais ambientais.

A vantagem do poder político e econômico de candidatos não indígenas ficou exposta no Parque das Tribos na eleição. Paredes e ruas do bairro exibiam campanha de não indígenas. A comunidade, porém, tinha dois representantes na disputa a deputado federal, o cacique Israel Munduruku (PDT) e a técnica de enfermagem indígena Vanda Witoto (Rede).

Israel Munduruku diz que o eleitor indígena é diferente, quer olhar nos olhos e firmar compromisso. Ele se queixa que os R$ 23 mil que recebeu do PDT não permitiram se deslocar às aldeias, no interior do Amazonas.

O material de campanha de Israel foi entregue a ele poucos dias antes do final da campanha e sem o slogan pedido: "Um cacique na política". Para piorar, nas urnas o nome apareceu com erro na etnia: "Cacique Mungurukú". Israel recebeu 569 votos.

"Uma falta de respeito. Deveriam estar felizes por apoiarem um indígena. A gente pensa que eles vão pensar como nós, mas não pensam. Estou arrependido, mas o PDT foi o único partido que me deixou ser candidato. Procuro o PT, mas as listas sempre estão fechadas. No PSOL, brigam muito", disse o cacique.

Joenia Wapichana, única deputada indígena da atual legislatura, concorreu à reeleição pela Rede de Roraima em coligação com o PSOL. Ela foi a sexta melhor votada para a Câmara no estado e aumentou em 24,3% o eleitorado em comparação ao pleito anterior, mas a federação Rede/PSOL teve menos votos que PSD e União Brasil. Estes, por isso, "puxaram" para a vitória três deputados com menor votação que ela.

A aldeia Tururukari-uka, do povo kambeba, também entrou na rota de candidatos não indígenas, uma maratona que ocorre a cada dois anos. A uma semana do primeiro turno, com folhas de árvores enfeitando a grande maloca e vestidos com as tradicionais roupas de algodão cru, os kambebas receberam mais um candidato não indígena atrás dos 44 votos da comunidade.

A aldeia está a 500 metros da rodovia AM-070, no município de Manacapuru (70 km de Manaus). No período de chuvas, as águas sobem e tornam difícil o acesso ao local. Os indígenas aproveitam a eleição para serem ouvidos por quem aparece em busca de votos. Dessa vez, a construção de uma ponte e melhorias na escola indígena foram as prioridades.

Os kambebas de Manacapuru cogitaram direcionar os votos em indígenas, disseram à reportagem. Ao longo da campanha, porém, desanimaram. Alegam que só foram procurados e só conseguiram apresentar o pleito urgente da aldeia para os não indígenas.

"Os parentes só mandaram mensagem e exigiram nosso voto porque [a gente] é indígena. Peraí, não é assim. Nós temos as nossas propostas para serem apresentadas", argumentou a liderança indígena Marlete Kambeba, 37.

"Hoje a gente sabe que faz a diferença votando. Antes não tínhamos o entendimento que podíamos trazer, por meio da política, melhorias para a aldeia. Antigamente, o político vinha, colocava cartaz e a gente só balançava a cabeça. Hoje eles vêm para ouvir o que pensamos", concluiu

Vanda Witoto, que concorreu a deputada federal pela Rede, critica a lógica do voto escambo imposto pelas candidaturas dos brancos nas aldeias.

"Sou uma mulher indígena, fazendo uma caminhada política de luta pelos nossos direitos. Não vamos com o mesmo peso nem oferecemos troca. Na eleição, levamos também uma educação de cidadania", disse ela, que recebeu 25.545 votos, mas não foi eleita pelo Amazonas.

O analista jurídico do TRE-AM (Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas) Valber Nascimento, mestre em direito eleitoral, aborda em sua dissertação os entraves às candidaturas indígenas. Como fatores, ele cita: a burocracia do processo eleitoral brasileiro, a lógica de exercício do poder e o racismo dos não indígenas em relação aos candidatos indígenas.

O indígena Gersem Baniwa, doutor em antropologia social e professor da UnB (Universidade de Brasília), avalia, no entanto, que existe uma outra questão: pela construção histórica, os próprios indígenas preferem votar em brancos.

O antropólogo afirma que o preconceito em cidades com identidade indígena, como Manaus, revela um "autorracismo por não assumir sua ancestralidade". Para ele, por essa razão, "os candidatos indígenas cometeram erros na escolha de partidos". "O não indígena conservador de Manaus jamais vai votar no índio. Os não indígenas progressistas votam", disse.

Baniwa vê retrocesso no Congresso eleito, mas, por outro lado, há avanço "substantivo e histórico". Ele explica que, em contato com uma sociedade dividida, é natural que indígenas também apresentem divisões. Os parlamentares indígenas com pauta anti-indígena preocupam, na sua opinião, mas existe precedente histórico. "No Brasil colônia, houve indígenas que resistiram e outros que se aliaram com colonizadores."

Esta reportagem foi feita com apoio do Pulitzer Center.