Negros são maioria nas igrejas evangélicas, e desigualdade ajuda a explicar

Por ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER E GUSTAVO LUIZ

SÃO PAULO E CAMPINAS, SP (FOLHAPRESS) - O pastor Samuel Procópio, 39, perdeu a conta de quantas vezes visitou o continente dos seus ancestrais. "A África é minha casa", contou ao Podcast Cristão. "Lá só tem meus irmãos."

Tanto faz se é bandido, policial, rico, mendigo ou presidente, disse o líder da Assembleia de Deus Avivamento Pleno. Praticamente todos têm a mesma cor da pele que a dele. Preta.

No Brasil é diferente. Há muitos negros como ele, mas poucos no topo social. "Sempre tem preconceito." Como um pastor que achou que o elogiava ao defini-lo como "pretinho assim, mas só por fora".

Um estarrecido Samuel indagou se "por dentro as pessoas são de outras cores". O interlocutor pediu calma: só estava dizendo que ele era um bom homem, "um preto de alma branca".

Samuel considera que o colega foi racista, mas não por maldade. "Percebi um tom de inocência, ele estava reproduzindo o que ouve sempre."

Projeções apontam que o Brasil caminha para uma maioria evangélica em poucos anos, e ela será sobretudo pentecostal, negra e pobre. Pesquisa de outubro feita pelo Datafolha mostra que 60% dos fiéis são pretos ou pardos.

"Os negros têm feito uma opção pelas igrejas pentecostais", diz o pastor Marco Davi de Oliveira, autor de "A Religião Mais Negra do Brasil". "As chamadas religiões de origem africana estão ficando cada vez mais brancas. Veja os pais e as mães de santo. Uma imensa parcela é branca. E não tem aqui nenhuma intolerância, é só uma observação."

A adesão, segundo Oliveira, "torna-se natural" porque o pentecostalismo latino-americano "é uma religião de pobres, que são majoritariamente negros".

A presbiteriana Simony dos Anjos, 36, veio de uma "família muito característica da periferia" de Osasco (SP). Ser crente, "muito mais do que uma experiência de fé, também é uma grande experiência social", diz.

A começar por reuniões que extrapolam os ritos religiosos, como "um almoço que a gente chamava de junta-panela", em que cada um levava um prato para o coletivo.

Em denominações maiores, é comum ver uma liderança com mais brancos pastoreando uma maioria negra. Nas igrejas menores, há mais pastores com pele parecida à das ovelhas, diz Simony. "As igrejas independentes vão se enraizando nas periferias, com um modo de auto-organização. São aquelas com nomes como Espada de Fogo, que muitas vezes as pessoas acham divertido, mas fazem sentido para as pessoas que criam aquele espaço comunitário de fé."

E onde faltam políticas públicas sobram casas evangélicas. Qualquer um que não estiver preso numa bolha elitista sabe do que Simony está falando.

Seu bisavô se converteu porque aprendeu a ler e escrever por meio da Bíblia, conta. Ela mesma se lembra da importância da comunidade religiosa na infância e na juventude.

Simony passou muitas férias em escolas bíblicas até a mãe conseguir um emprego de professora e poder bancar viagens à Baixada Santista. Aprendeu violão e cantou por anos no ministério de louvor de sua igreja. Sentir-se acolhida não é pouca coisa na vida de uma mulher negra periférica.

É o que Simony sempre diz: "Enquanto a dona Maria limpa o chão do metrô e é extremamente desvalorizada, desrespeitada, ganha muito pouco, na igreja ela tem o nome, ela é a dona Maria do círculo de oração, ela vai cuidar da lanchonete da igreja, do bazar beneficente".

Valéria Souza, 44, conta que sua avó foi a primeira a "aceitar Jesus", na carioca Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Já são três gerações ali, descontando um período em que sua mãe parou de ir porque a diretoria da época "era um pouco mais rígida" e ela queria usar vestido de alcinha. Quando voltou, a filha tinha sete anos.

É uma vida toda na Vitória em Cristo, da qual a moradora da Vila Cruzeiro, uma comunidade no Rio, é hoje secretária. Seu primeiro beijo na boca foi com um irmão da igreja. Tocou de chocalho à flautinha na banda infantil e depois migrou para o coral.

"Não conheço meu pai. Tudo o que aprendi foi aqui. A me comportar, a me expressar. A pastora Elizete [Malafaia] foi minha professora na escola dominical. Se não fosse a igreja, hoje não sei onde estaria."

Para a antropóloga Lívia Reis, do Instituto de Estudos da Religião, a oferta de assistência é um atrativo que vai muito além de "dar comida na rua". Igrejas promovem atividades mil, da música ao UFC. Criam, assim, um senso de comunidade próprio.

Para isso, a fé se converte num espaço imaginário de pertencimento e quase que monopoliza a vida do crente. "Por exemplo, se você está numa quadra com os amigos da igreja, você está sendo igreja, sem estar no espaço físico do templo", explica Reis.

A vivência evangélica é também guarida em territórios marcados pela violência, afirma. "Para mães, negras e de periferia, são lugares minimamente protegidos e respeitados. Isso não quer dizer que as igrejas são imunes a balas. Mas, para elas, é melhor que os jovens estejam ali do que em outros lugares."

Enxerga-se ali um espaço em que é possível ascender por mérito próprio --se Deus quiser, claro. Dá-se um peso maior à ação individual, embalada por uma crença na providência divina, do que às estruturas de desigualdade social. Valéria, a secretária da Vitória em Cristo, por exemplo, sonhava em ser como Glória Maria, a jornalista.

"A gente percebe teologias muito afinadas com uma percepção neoliberal de mundo, aquela da individualidade e da valorização do mérito, intermediada por uma visão religiosa", diz Reis.

A pastora Perlla Rocha, 48, filha de pai católico e mãe do candomblé, chegou a receber os sacramentos da Igreja Católica. Seu casamento, inclusive.

Em 1997, uma amiga a convidou para um culto. "Digo que os céus alcançaram meu coração por meio das canções, que eram muito bonitas e abalaram a minha estrutura."

Também mexeu com Perlla sentir-se parte, e não à parte, de algo. "Deus ama todo mundo, e é necessário que a comunidade seja uma representação desse acolhimento", diz. "Nem sempre as pessoas negras são bem recepcionadas nos lugares. Eu mesma, quando chego em alguns ambientes, também não sou. Então, sim, o acolhimento faz muita diferença para nós."

Não que o segmento seja blindado do racismo. A pastora, hoje na mineira Mega Church, lembra de um rapaz negro que cantava muito bem, numa igreja onde ela ia antes. Ele ganhou o apelido de Kleber Lucas, cantor grande no gospel.

"Uma moça branquinha se apaixonou. Mas, de acordo com as regras, você tinha que ter um aconselhamento antes de namorar. O pastor da época foi contra e disse que Deus tinha alguém muito melhor para a vida dela."

A negritude está na gênese do pentecostalismo. Filho de ex-escravizados, William Joseph Seymour liderou uma intensa experiência religiosa na rua Azusa, em Los Angeles (EUA), em 1906. Não sem preconceito, a elite local se assustou com aqueles cultos comandados por um pastor negro.

Fiéis acreditaram testemunhar curas milagrosas e o dom de falar em línguas estranhas, concedido pelo Espírito Santo. Ambos pilares do movimento pentecostal impulsionado a partir dali.

Para Oliveira, o pastor que escreveu sobre a fé dos negros, "ser pentecostal tem um quê de reminiscência da ancestralidade", e "as experiências místicas ajudam a religar [o fiel] com ela".

"Muitas vezes, a experiência que remonta a essa africanidade se torna mais importante do que a interpretação bíblica", diz. "Porque ela pode ser de todo mundo, desde o letrado até o analfabeto."

Uma pena que "as igrejas evangélicas seguiram a Igreja Católica e embranqueceram a Bíblia, a liturgia e a fé do cristianismo", afirma. "Mas a Bíblia é um livro de negros escravizados que encontram no Jesus Cristo preto que cresceu em Nazaré a verdadeira libertação."