Formigas produzem 'leite' que nutre tanto larvas quanto adultos

Por REINALDO JOSÉ LOPES

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Imagine um animal cujos filhotes do sexo feminino produzem um tipo de leite altamente nutritivo, que é consumido tanto pelos bebês quanto pelos adultos da espécie. Parece ficção científica, mas é mais ou menos isso que pesquisadores nos EUA identificaram em diversas espécies de formigas espalhadas pelo mundo.

Experimentos demonstraram que a secreção rica em nutrientes é produzida pelas pupas dessas formigas (na fase do desenvolvimento equivalente ao período de metamorfose de uma lagarta em borboleta). As formigas adultas colocam suas larvas para "mamar" nas pupas, e os indivíduos maduros também deglutem a secreção. Se o líquido não for consumido, as pupas acabam morrendo, o que significa que o processo é crucial para todas as "faixas etárias" do formigueiro.

A pesquisa, que acaba de ser publicada na revista científica Nature, uma das mais importantes do mundo, pode ser um marco importante para entender a evolução da complexidade social das formigas. A interdependência alimentar entre os membros do formigueiro ao longo de três importantes fases de seu desenvolvimento poderia ter reforçado a rigorosa cooperação e divisão de trabalho que caracterizam as sociedades de formigas nas últimas dezenas de milhões de anos.

Mas, se a "amamentação" é tão importante para as formigas, que estão entre os insetos mais estudados desde o século 19, por que ninguém tinha se dado conta da existência dela até agora? "Às vezes é difícil detectar interações mais sutis em meio ao burburinho do formigueiro", disse à Folha o coordenador do estudo, Daniel Kronauer, da Universidade Rockefeller, em Nova York.

"Orli Snir, que é uma pesquisadora de pós-doutorado no meu laboratório, teve a ideia engenhosa de colocar indivíduos em diferentes estágios de desenvolvimento em isolamento social, fora da colônia. É um pouco como desmontar uma máquina complexa para tentar ver o que cada componente dela faz", conta Kronauer.

"Foi assim que Orli percebeu que as pupas das formigas secretam um fluido. Dentro da colônia, o líquido nunca se torna visível, porque outros membros do formigueiro o consomem imediatamente, impedindo que se acumule. É por isso que nunca ninguém tinha visto a secreção antes."

Os primeiros detalhes sobre como o processo funciona foram obtidos estudando a espécie Ooceraea biroi, de origem asiática, que tem um estilo de vida peculiar. Em vez de contar com uma rainha que bota todos os ovos, como acontece com muitos insetos do grupo, as formigas comuns da espécie são capazes de botar ovos, que se desenvolvem sem a necessidade de que um macho as fertilize -a geração seguinte, portanto, lembra um exército de clones, geneticamente quase idêntica à geração de suas mães.

"Na maioria das formigas, a colônia contém membros de todos os diferentes estágios de desenvolvimento, como ovos, larvas e pupas", diz Kronauer. "Mas, no caso da O. biroi, as larvas jovens só estão presentes quando as colônias também contêm pupas mais velhas, mas nenhum outro estágio imaturo. Por causa disso, provavelmente ficou mais óbvio que havia algum tipo de interação entre as pupas mais velhas e as larvas jovens."

Quando isoladas, as pupas só se desenvolviam se os cientistas iam limpando o acúmulo de fluido -do contrário, acabam morrendo afogadas nele. Os cientistas, então, usaram um corante alimentar azul para marcar a secreção e viram que ela estava sendo consumida tanto pelos adultos quanto pelas larvas, que eram colocadas em contato com as pupas para "mamar". Aliás, o acesso ao "leite" das pupas aumentou muito a taxa de sobrevivência das larvas.

O que não é de surpreender, considerando os resultados da análise da composição do líquido. Ele mostrou ser rico em todos os tipos de aminoácidos (os componentes das proteínas), açúcares e vitaminas. A composição química da secreção, ao mesmo tempo, tem semelhanças com o fluido produzido por outros tipos de insetos durante a "muda", ou troca do exoesqueleto (carapaça protetora), que ocorre conforme eles estão crescendo.

E essa pode ser a chave para compreender a origem do processo. "A evolução normalmente se aproveita de mecanismos que já estão presentes", diz o coordenador da pesquisa. "Na maioria dos casos, o fluido da muda é reabsorvido e reciclado. Mas nas formigas, porém, em vez de a pupa reabsorver todo o fluido, parte dele vaza do corpo e pode ser consumido pelos membros do formigueiro."

A aposta da equipe é que o processo pode ser algo comum a praticamente todas as cerca de 20 mil espécies de formigas que existem. Isso porque, depois do trabalho com a O. biroi, eles examinaram quatro outras espécies, pertencentes a cada uma das grandes subdivisões evolutivas do grupo. Entre elas está a Solenopsis invicta, conhecidíssima dos brasileiros como lava-pés por causa de sua picada dolorida. Tanto a lava-pés quanto as outras espécies também produzem a secreção, com uma composição química muito parecida em todos os casos.

O pesquisador brasileiro Rodrigo Feitosa, especialista em formigas da UFPR (Universidade Federal do Paraná), diz que os resultados da equipe de Kronauer são um marco nos estudos sobre esses insetos.

"O trabalho da Orli abre todo um um universo novo de evidências", afirma Feitosa. "Pupas de formigas sempre foram negligenciadas em estudos comportamentais por serem consideradas membros passivos das colônias e, portanto, com pouca influência na dinâmica social. O fato de que pupas são capazes de secretar um fluido nutricional que beneficia larvas e adultos e que, se não removido, causa a morte das pupas, é uma descoberta que definitivamente amplia de modo inédito nosso conhecimento a respeito do comportamento social."