Prefeitura mira fim dos microapês para criar moradia para mais pobres em áreas centrais de SP
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há quase uma década a cidade de São Paulo tenta por meio do seu Plano Diretor estimular o setor imobiliário a construir moradias para a parcela mais pobre da população em áreas com acesso a transporte e oferta de empregos. O mercado, porém, encontrou brechas para erguer nesses locais imóveis demandados por grupos de maior renda ou em condições de conseguir financiamento.
Agora, com a retomada do processo de revisão do plano após uma série de paralisações, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirma que a proposta que enviará para Câmara Municipal calibra benesses aos empreendedores para que eles passem efetivamente a contribuir com a ideia de tornar áreas mais estruturadas da cidade acessíveis também para a baixa renda.
Entre as distorções que a prefeitura diz tentar combater com a revisão está a proliferação de apartamentos com menos de 35 metros quadrados, cuja inserção em muitos empreendimentos serviu apenas para justificar o acréscimo de vagas de garagens sem custos extras aos construtores.
Levantamento do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper aponta que o número de unidades licenciadas por ano desses microapês avançou de 1.150 para 11.461 (aumento de quase 900%) entre 2013 e 2021 nos Eixos de Estruturação e Transformação Urbana, que são as quadras laterais a corredores de ônibus e estações de metrô e trem.
"Acreditamos que há uma bolha de pequenos estúdios para moradia em São Paulo", afirma o pesquisador Adriano Borges Costa.
Houve ainda outro fator que contribuiu para o desvio de propósito do Plano Diretor aprovado em 2014: a popularização de aplicativos de aluguéis de curta duração, que tornou os microapês interessantes para investidores, em vez de atrair famílias de menor renda.
Isso significa que, embora o plano tenha atraído o mercado para construir nos eixos mais estruturados da cidade, a ocupação desses imóveis não resultou no adensamento demográfico e na pluralidade social esperados, segundo avaliação da própria SMUL (Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento).
Entender o que deu errado no planejamento da cidade passa pela compreensão da chamada outorga onerosa, regra pela qual o município cobra um valor adicional para edificações que ultrapassem o limite de área que pode ser construída no terreno.
A cobrança existe para compensar a municipalidade pelo adicional de infraestrutura pública que um grande empreendimento traz ao local onde foi instalado, mas a cidade abre mão do dinheiro quando quer estimular a ocupação de algumas regiões.
Em São Paulo, para estimular o uso do transporte público nos eixos onde há linhas de metrô e ônibus, o Plano Diretor determinou que a primeira vaga de garagem de cada apartamento não entra no cômputo do total da área construída. Ou seja, cada apartamento tem direito a uma vaga sem a exigência da taxa extra.
Para usufruir da isenção, o mercado passou a mesclar unidades relativamente grandes e outras muito pequenas, destinando as vagas dos microapês para os apartamentos mais amplos, cujos potenciais compradores pertencem a famílias com renda mais elevada e mais de um automóvel.
Agora, pela nova proposta da prefeitura, apartamentos inferiores a 35 metros quadrados perdem o direito à vaga não computável como área construída.
Além disso, nos casos em que há outorga onerosa, haverá desconto de 20% nessa taxa para unidades entre 35 e 70 metros quadrados, sendo que os inferiores a essa faixa de tamanho perdem o benefício. Hoje, o abatimento de 20% é aplicado para unidades com até 50 metros quadrados.
A proposta também prevê o fim da isenção por unidade habitacional. Em vez disso, libera uma vaga não computável para cada 70 metros quadrados de área construída, embora essa medida esteja gerando discussões entre urbanistas quanto à sua ineficácia ao desestímulo do uso do automóvel em uma cidade com suas principais vias já estranguladas pelo trânsito.
No mercado imobiliário, as críticas vêm no sentido oposto. Ely Wertheim, presidente executivo do Secovi-SP (sindicato das construtoras em São Paulo), afirma que há demanda por apartamentos de até 120 metros quadrados com duas vagas de garagem e, por isso, a revisão deveria contemplar essa situação.
"Não concordo que a construção desses apartamentos desfavoreça os mais pobres. Apartamento com duas vagas não significa que é para uma classe privilegiada", disse Wertheim.
Regra para ampliar oferta para baixa renda produz resultado tímido Entre as medidas do Plano Diretor que passaram ao largo do seu propósito original, a cota de solidariedade é das mais emblemáticas. A regra exige que empreendimentos de grande porte (com mais de 20 mil metros quadrados construídos) destinem 10% da área para moradias populares. Em troca, esses 10% deixam de ser considerados para o cômputo da outorga onerosa.
Inspirada em modelos adotados em Paris e Nova York, a cota solidária não resultou em nenhuma moradia para famílias que ganham até três salários mínimos entre 2014 e 2020, segundo levantamento do Insper.
Além da forma clássica de driblar as regras, que é basicamente fraudar a comprovação de renda requerida, o empreendedor pode simplesmente dividir construções de grande porte em diferentes empreendimentos ou compensar a ausência de moradias para a baixa renda com uma doação do valor correspondente às unidades para o Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano).
No período analisado, apenas sete empreendimentos usaram a regra para construir habitações sociais para quem ganha de 3 a 6 salários mínimos. Outros 26 que usaram o benefício optaram por doações que totalizaram cerca de R$ 54 milhões ao fundo.
"Sem necessariamente cometer irregularidades, o mercado só usou a regra para construir moradias para famílias com capacidade de obter financiamento", afirma Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Costa, também do Insper, diz que a minuta é tímida, sobretudo quanto à revisão da cota de solidariedade. "A prefeitura optou por não mexer no vespeiro", comentou.
A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento afirmou, em nota, que "é diretriz desta Revisão Intermediária do Plano Diretor de São Paulo a priorização dos incentivos para aumento da produção de unidade de Habitação de Interesse Social na cidade para as famílias de mais baixa renda".
A nota reforçou que é com esse objetivo que houve a inserção de uma proporção de unidades para famílias com renda de até três salários mínimos como condição para o licenciamento de empreendimentos que necessitam aderir à cota de solidariedade.
De fato, a proposta da prefeitura cria a obrigatoriedade de que metade das unidades de empreendimentos da cota de solidariedade passem a ser para essa faixa de renda.
Tavolari, do Insper, diz que a regra pode ter efeito contrário ao esperado ao diminuir ainda mais os empreendimentos interessados em aplicar a cota. "Essa alteração pode levar um mercado que já produz pouca habitação de interesse social a não produzir mais nada", diz.
Em resposta, a SMUL informou que a minuta do projeto está em consulta pública até 17 de fevereiro para receber aperfeiçoamentos e contribuições da sociedade. A secretaria também afirmou que o texto tem outras propostas de estímulo para a área habitacional.