Inquérito sobre genocídio precisa subir cadeia de comando, diz subprocurador-geral da República

Por UIRÁ MACHADO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Luciano Mariz Maia, 63, é um subprocurador-geral da República com conhecimento raro sobre genocídio. Quase 30 anos atrás, ele atuou no primeiro e, até agora, único caso que resultou numa condenação por esse crime no Brasil.

Para ele, a Polícia Federal acerta na decisão recente de abrir inquérito para apurar um possível novo genocídio do povo yanomami e de não se limitar a olhar para os garimpeiros, que são aqueles cujas ações provocaram os danos imediatos.

"Quando se começa a investigar, necessariamente se começa a escalar na cadeia de comando. Quais são os atores no campo da decisão política? De quem é a decisão de não enviar recursos? De quem é a decisão de deixar acontecer?", afirma.

Essa é uma diferença significativa entre esse caso e o de 1993. Naquele época, a denúncia se dirigiu apenas a 24 garimpeiros, dos quais 5 terminaram condenados pelo que ficou conhecido como massacre de Haximu, nome de uma comunidade yanomami na fronteira do Brasil com a Venezuela.

Os crimes começaram no dia 15 de junho de 1992, quando sete garimpeiros convidaram seis indígenas para caçar e, durante a caminhada, assassinaram quatro deles. Como reação, os indígenas mataram um dos garimpeiros.

Em 23 de julho, os garimpeiros invadiram uma área onde estavam os indígenas e, com tiros e golpes de facão, chacinaram 12 yanomamis: um homem, duas idosas, uma mulher adulta, três adolescentes, quatro crianças e um bebê -a maioria dos homens adultos havia saído do local para participar de uma festa típica da etnia.

Três anos depois, Maia e seus colegas Carlos Frederico Santos e Franklin Rodrigues da Costa conseguiram a condenação pelo crime de genocídio, numa decisão confirmada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 2000 e pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2006.

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PERGUNTA - O sr. considera correta a decisão da PF de abrir um inquérito sobre o possível genocídio do povo yanomami?

LUCIANO MAIA - Os fatos que estão sendo apontados indicam a ocorrência de mortes de membros de comunidades indígenas yanomami em grande quantidade, em circunstâncias que revelam falta de acesso a alimentos e falta de acesso a medicação, em razão da presença de terceiras pessoas contaminando os rios, afastando suas caças e, como consequência, gerando para os índios dificuldades de manutenção das suas existências.

O delito de genocídio pode ser cometido sob várias condutas distintas: a) matar membros de grupo; b) causar danos graves à integridade física desses membros; c) submetê-los à condição de existência que resulte em dificuldade de subsistência; d) remoção forçada; e) esterilização forçada do grupo.

Estamos, em tese, diante da hipótese "c". A dificuldade será fazer a relação dos fatos e identificar os fatores causais disso e, ao mesmo tempo, vincular a uma deliberada ação ou deliberada omissão. Porque o delito de genocídio exige o dolo, isto é, a vontade de cometer ou a vontade de se omitir.

E veja que há a chamada omissão dolosa, quando existe um dever de agir e eu decido não agir, por exemplo. Na Constituição está muito claro que cabe à União proteger os índios. Ou seja, é factível essa hipótese investigativa [sobre genocídio]. Ela não está vindo do nada.

P - No caso de um processo judicial, quem seriam, em tese, os potenciais réus?

LM - Os chamados perpetradores imediatos seriam aqueles cujas ações estão causando os danos ambientais, à saúde física e mental e à própria coesão do grupo. E esses são, segundo a documentação que tem sido disponibilizada, os garimpeiros.

Mas há um outro conjunto de pessoas. Já constatamos há bastante tempo que não se consegue instalar uma balsa de garimpo sem uma grande organização por trás. Essas balsas são caras; há necessidade de pessoas que abram clareiras; em seguida, que venham aviões e deixem materiais e mantimentos.

Além disso, quando se começa a investigar, necessariamente se começa a escalar na cadeia de comando. Quais são os atores no campo da decisão política? De quem é a decisão de não enviar recursos? De quem é a decisão de deixar acontecer?

Em que medida a política do 38º presidente [o entrevistado se refere dessa forma a Jair Bolsonaro] estimulou a ida de garimpeiros? Quanto de sua voz e de sua caneta alterou pessoas em posição de comando nos órgãos públicos e cuja vontade política passou a ser não agir?

P - Existe alguma comparação entre esse caso e o de 1993?

LM - O fato de terem sido garimpeiros em Roraima, quando o poder local é defensor do garimpo. Mas o contexto político e social é diferente.

Naquela época, o presidente da República, [Fernando] Collor de Mello, teve a grandeza e a coragem de reconhecer a Terra Indígena Yanomami. O governo dele e o que o sucedeu atuaram contra o garimpo e em defesa dos índios.

Os garimpeiros estavam em choque com aquela mudança. Em Roraima, eles são considerados desbravadores; eles têm uma estátua monumental na praça do Centro Cívico da capital. De repente, eles passaram a ser considerados criminosos, e o índio, que era alguém considerado de segunda qualidade, passa a ser o titular de um direito a uma terra e um direito a ser protegido pelo Estado.

P - E agora?

LM - No governo que se encerrou em 31 de dezembro, houve um discurso de incentivo à prática garimpeira, um discurso contrário aos índios. Houve todo um processo de redução do aparelho de fiscalização e proteção dos índios e do meio ambiente.

Sergio Moro, como juiz federal que foi, tem o conhecimento de que é dever da União cuidar de direitos e interesses dos povos indígenas. Como ministro da Justiça do 38º presidente, ele tinha conhecimento de que um órgão de proteção aos índios, que é a Funai [Fundação Nacional do Índio], estava sob seu comando. Mas ele nunca fez nada em defesa dos índios no seu mandato. Ao contrário, ele via todo o desmonte acontecendo e deliberadamente se omitia.

Essa é uma característica do ataque a comunidades indígenas no Brasil. Não é o Estado que destrói os índios com balas. Mas é o Estado, com o dever de proteger, que deixa de se fazer presente.

P - O fato de o STF ter julgado o crime de genocídio em 2006 representou um avanço institucional?

LM - São duas decisões muito importantes: a do STJ e, em seguida, a do STF. São importantes porque a expressão "genocídio" é associada ao Holocausto, o que gera nas pessoas a compreensão de que precisa ter uma quantidade imensa de mortes.

Mas o que a convenção do genocídio de 1948 aponta é que, em verdade, pode até nem haver morte. O que o genocídio identifica é que minorias étnicas, linguísticas, religiosas são protegidas enquanto tais, enquanto minorias. E aquele julgamento mostrou isso.

P - Naquele caso, o STF não deixou claro se, havendo mortes, o genocídio deve ser julgado pelo Tribunal do Júri, como são os crimes dolosos contra a vida, ou por um juiz singular da Justiça Federal. Qual sua avaliação?

LM - O STF reconheceu que o genocídio é um delito previsto na nossa legislação, mas falta identificar que o genocídio é um delito específico. Quando foi examinar o caso de Haximu, o Supremo queria condenar tanto por genocídio como pelos assassinatos, o que remeteria o caso para o júri popular.

Agora, imagina um júri popular julgando genocídio em Roraima, ou mesmo em outros lugares no país. Como vai conseguir julgar com imparcialidade e isenção, até porque o corpo de sentença é formado por não índios que se sentem atingidos pelos direitos dos índios?

Se há um genocídio mediante mortes, você encontra forma jurídica de agravar a punição. Mas é preciso entender que o delito é o de genocídio. Do mesmo modo que, no latrocínio, o ladrão mata alguém para garantir a posse de um bem material e o delito é de latrocínio [não homicídio].

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RAIO-X

LUCIANO MARIZ MAIA, 63

É subprocurador-geral da República. Mestre pela Universidade de Londres e doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, foi vice-procurador-geral da República no mandato de Raquel Dodge (2017-2019).