Ação contra garimpeiros pode gerar ciclo de vingança, diz pesquisador em Roraima
BOA VISTA, RR(FOLHAPRESS) - O sociólogo Rodrigo Chagas, 42, professor de ciências sociais da UFRR (Universidade Federal de Roraima), diz temer os eventuais ciclos de vingança que possam acontecer na retirada dos garimpeiros da terra yanomami e afirma que soube da chegada de novos deles no território e de ameaças de resistência.
"Eu soube que entrou gente dizendo 'vamos resistir e, se vierem fechar, vamos matar geral'", afirmou Chagas, pesquisador do tema dentro do programa de pós-graduação em sociedade e fronteiras da UFRR.
O governo Lula (PT) deu início às operações para tentar desmontar o garimpo e retirar os mais de 20 mil garimpeiros que invadiram a área nos últimos anos. No dia 20, foi declarada emergência pública no território yanomami.
Para o sociólogo, é preciso construir um novo projeto de desenvolvimento político e econômico para a região, que desde os governos militares tem no garimpo o principal modelo.
Chagas defende um olhar adequado, sem maniqueísmos, para a crise. "Reduzir todos que participam, direta ou indiretamente, do garimpo a 'sujeitos maus', bárbaros estupradores que devem ser destruídos, pode estressar ainda mais um grupo com profundos laços sociais por todo o território."
Roraima tem cerca de 500 mil habitantes, e vivem no estado ao menos 50 mil garimpeiros, já totalmente inseridos na estrutura social e econômica.
**PERGUNTA - De um modo geral, a população de Roraima apoia os garimpeiros ilegais que estão na terra yanomami. Por quê?**
RODRIGO CHAGAS - É uma construção histórica, o garimpo está muito ligado ao crescimento econômico e demográfico de Roraima. O primeiro projeto para a região foi construído pelos militares. A partir de 1964, os territórios federais foram considerados áreas de segurança máxima nacional e sua administração ficou a cargo das Forças Armadas. Assim, o território de Roraima passou a ser governado pela Aeronáutica, o do Amapá pela Marinha e o de Rondônia pelo Exército. Foram construídas a BR-174, executada entre 1970 e 1977, e a BR-210 (Perimetral Norte), cuja obra foi iniciada em 1973.
Nesses dois casos foram promovidos massacres, genocídio indígena. No primeiro caso, as vítimas foram os Waimiri-Atroari, estima-se que 8.000 indígenas foram mortos. No segundo, os yanomamis. Foi o primeiro contato que se fez com eles e que abriu para o problema. Os relatos dessa época são terríveis, incluem a infecção proposital de comunidades indígenas inteiras e a utilização de armadilhas que eletrocutavam indígenas com baterias de caminhões.
**P.- É nesse contexto que o garimpo vira projeto de desenvolvimento para a região?**
RC- Sim. Hélio da Costa Campos [coronel-aviador da FAB, governador de Roraima entre 1967-1974] olha para cá e fala: o desenvolvimento dessa região está atrelado ao minério, ao ouro e ao diamante. Constrói a estátua do garimpeiro [que fica na praça do Centro Cívico, em frente ao Palácio do Governo do estado de Roraima].
Essa crença de que o garimpeiro seria o agente do desenvolvimento por excelência da região foi reforçada com a divulgação das jazidas minerais existentes na região pelo Projeto Radam, em 1975.
**P.- O sr. já escreveu que toda essa articulação não se traduziu simplesmente em um projeto econômico, mas também ideológico. Poderia explicar melhor isso?**
RC- Falo desses clichês das ruas, como "índio não trabalha", "o território é vazio", "a crise é uma construção das ONGs". Como 60% do território é formado por reserva indígena, então toda a culpa para Roraima não se desenvolver recai sobre isso. Faltou internet? Foram os índios que cortaram a fibra ótica. É a desculpa mais comum.
Esse discurso pega. São pessoas que montaram a vida a partir do garimpo, que foram chamadas para colonizar o território. São várias gerações.
**P.- É por isso que a realidade aqui parece tão diversa, com tantas pessoas apoiando os garimpeiros?**
RC- Eu fico vendo na TV o discurso que está sendo construído. Há uma disputa em torno desse discurso. Você fala: os garimpeiros são homens maus, que violentam indígenas e que fazem narcotráfico. E aí é um problema porque o garimpeiro é o meu aluno, é o pai do meu aluno. Para a população local, você está falando o quê? Meu pai era garimpeiro, meu avô era garimpeiro, você está chamando o meu avô de estuprador?
**P.- Como analisa a atual crise humanitária dos yanomamis?**
RC- Essa tragédia não foi construída do dia para a noite. A pressão da garimpagem sobre as terras indígenas é contínua e aumentou a partir de 2016. É possível que o agravamento da crise na Venezuela tenha feito com que brasileiros que garimpavam ali atravessassem a fronteira e invadissem a reserva indígena. A eleição de Jair Bolsonaro, que sempre foi simpático à garimpagem, também incentivou mais uma vez a ocupação massiva das terras yanomamis, entre outros territórios da Amazônia.
Com a pandemia de Covid-19 e as péssimas condições para o trabalho na cidade, a garimpagem explodiu novamente como alternativa econômica.
Eu estou bem preocupado nesse momento. O meu medo são os ciclos de vingança. E também pode ter um efeito contrário, em vez de esvaziar o território, ir mais gente para ocupar. Eu soube que entrou gente dizendo "vamos resistir e, se vierem fechar, vamos matar geral".
**P.- Matar quem, exatamente?**
RC- Quem estiver lá, indígena, servidor, como uma forma de protesto, de resistência. Eu não acho que vai ficar barato. Tem coisas importantes: vai sair de lá e vai para onde? Não tem mais terra em abundância e barata, o agronegócio emprega muito pouco. Parte desses garimpeiros vai para Mato Grosso, Rondônia, Suriname, Guiana. Mas parte está sendo insuflada pelos empresários e políticos que estão por trás desses negócios.
É muito tenso, delicado. Tem um discurso sendo construído de oposição. Por exemplo, querer falar que o governo Lula é genocida e que matou garimpeiros.
**P.- O que o sr. pensa sobre essa proposta do governador Denarium de criação de projeto social para os garimpeiros que estão saindo da terra yanomami?**
RC- É preciso ter um olhar adequado para o problema e evitar que se fature politicamente em cima dessa crise. Reduzir todos que participam, direta ou indiretamente, do garimpo a "sujeitos maus", bárbaros estupradores, que devem ser destruídos, pode estressar ainda mais um grupo com profundos laços sociais por todo o território.
Em sua maioria, os homens e as mulheres que se submetem à garimpagem estão sob pressão de diversos fatores, das suas condições de vida aos costumes arraigados por gerações e à manipulação de empresários e governos de ocasião.
**P.- Qual é a saída?**
RC- Não tem saída fácil. Para além das medidas emergenciais, é preciso construir um novo projeto de desenvolvimento político e econômico para essa região que até hoje vive a falência de um modelo pensado e estruturado durante os governos militares. Você precisa dar uma alternativa econômica. As pessoas aqui querem as mesmas coisas que qualquer pessoa em qualquer lugar. Querem ir ao shopping, consumir, fazer as coisas. E aí querem dar bolsas [de auxílio] para pessoas que estavam ganhando 50 contos [R$ 50 mil] em três meses? Claro, tem que olhar para os mais necessitados, mas tem que ter um projeto a médio e longo prazo, dar um horizonte de expectativas para essas pessoas de como criar suas famílias, fazer as suas coisas.
**P.- O impacto econômico do desmonte do garimpo será tão grande para Boa Vista quanto temem os moradores?**
RC- Os dados econômicos não demonstram isso. Aqui é muito dependente do contracheque dos funcionários públicos, dos serviços e um pouco do agronegócio. Óbvio que nesses serviços e comércio você tem dinheiro do garimpo. Temos muitas empresas aqui que financiam o garimpo. Essas empresas vão sofrer. Mas não acho que o impacto seja devastador.
**P.- Quem são os garimpeiros de Roraima na sua maioria?**
RC- Você tem os microempresários e microempresárias do garimpo, que têm pouco dinheiro, mas que trabalharam muitos anos no garimpo e entendem um pouco de prospecção. Fazem investimentos de R$ 30 mil, operam com máquina velha, com mais um trabalhador. Se começa a dar um ourinho, arrumam um sócio, um empresário que banque, e o negócio é ampliado. Outros arrumam R$ 100 mil, vão no agiota, colocam a casa como garantia, compram duas máquinas e começam a operar. Tem aqueles que veem uma vaga no garimpo anunciada em redes sociais e vão lá. O cara chega sem nada e, para entrar, precisa pagar de 10 a 15 gramas de ouro. Já entra com essa dívida. E tem aqueles empresários que têm R$ 1 milhão para investir a um risco muito alto.
**P.- Fala-se de políticos com negócios no garimpo e de narcogarimpeiros. Tem de tudo. Até as pessoas que gostam de garimpar por lazer, como pescar ou caçar.
RC- A questão ambiental entrou mais em pauta no governo Lula. Isso não pode atrair novos negócios?**
Lula faz o discurso de que "vamos fechar garimpos", todos os presidentes internacionais falam da Amazônia, o Lula sobe com o Raoni [líder indígena da etnia kayapó, que participou da cerimônia de posse] de cocar e tal, faz agora a operação com os yanomamis, e cadê o projeto? Eles falam "a gente trabalha com índio todo dia e ninguém tá de cocar". Soa muito fake, e assim fica fácil eles [garimpeiros] venderem essa imagem de que essa crise é falsa.
**P.- Essa crise humanitária vivida pelos yanomamis não comove a população?**
RC- Muitas pessoas negam a crise, acham que é mentira, manipulação, que isso tudo foi feito pelo governo comunista da Venezuela, que está trazendo problema pra gente aqui, que esses indígenas desnutridos que aparecem na TV são todos da Venezuela.
**RAIO-X**
Rodrigo Chagas, 42
É professor e coordenador do curso de ciências sociais na UFRR (Universidade Federal de Roraima). Atualmente, realiza a pesquisa "Crime organizado e transformação social em Roraima", vinculada ao Programa de Pós-Graduação Sociedade e Fronteiras, e é membro do projeto de extensão Realidade Latino-americana (Unifesp-Osasco).