Após quase desistir no 1º dia, agente é premiada por ações em presídios no Maranhão
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Enquanto cursava serviço social na Universidade Federal do Maranhão, a inspetora de polícia penal Kelly Cristina Carvalho, 43, foi aprovada em concurso público para trabalhar como agente no pavilhão feminino da Penitenciária de Pedrinhas, em São Luís (MA). Quase desistiu no primeiro dia.
Ainda se passariam oito anos até que o complexo virasse notícia internacional pelo massacre violento que deixou 64 presos mortos, muitos decapitados. Mas já naquele momento Kelly, hoje secretária-adjunta de atendimento e humanização penitenciária, disse ter ficado horrorizada com o que viu.
Segundo ela, era um ambiente insalubre e sem segurança. Ninguém usava farda e todo mundo ficava solto. Não era possível identificar quem era preso e quem era servidor.
"O diretor que recebeu eu e outra colega já botou muito medo em nós, duas novatas. Ele tirou uma faca e uma arma debaixo da mesa dele e disse: 'aqui eu trabalho assim'. Eu saí aterrorizada. Tive uma crise de choro quando cheguei em casa e disse ao meu marido que não voltaria para aquele lugar. Mas ele que não me deixou desistir."
Ela voltou, mas enfrentou desafios -como a desconfiança de colegas por acreditar em um sistema mais humanizado-, e até boicotes. Ganhou até o apelido de Irmã Dulce. Mas a inspetora ignorou a ironia.
O resultado, ao não desistir naquele primeiro dia de trabalho, é que, ao longo desses 18 anos de carreira em várias unidades prisionais, Kelly desenvolveu projetos que ajudaram a levar dignidade para o ambiente penitenciário, o que contribuiu para a ressocialização dos detentos.
Esse pacote de ações elaboradas por ela faz parte de mudança na gestão penitenciária em 2015 que levou o sistema do Maranhão a ser considerado um modelo de ressocialização para o país, de acordo com o Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
Pelo conjunto desse trabalho, ela foi laureada com o Prêmio Espírito Público, em novembro de 2022, na categoria Segurança Pública.
Quando foi designada para trabalhar como assistente social no Centro de Detenção Provisória em Pedrinhas em 2009, Kelly se deparou com uma unidade, inaugurada um ano antes, sem planejamento. Tanto que não havia assistência social. Era um local onde, segundo ela, ninguém queria trabalhar.
"Em uma semana não veio um interno para eu atender. Fiquei entediada. Pedi ao diretor para falar com eles e me apresentar. Foi o que fiz durante o banho de sol deles e informei o horário que estaria ali."
A conversa surtiu efeito e Kelly começou a receber bilhetes pedindo atendimento. Mas ainda chegavam poucas demandas. Ela estranhou e descobriu que os recados ficavam represados com alguns agentes.
A servidora então pediu para o diretor selecionar um representante de cada um dos quatro pavilhões e passou a fazer reuniões semanais com eles, que levavam as solicitações dos colegas encarcerados.
Uma das demandas que Dona Kelly, como era chamada, lembra era que um dos internos precisava sair do presídio para registrar o filho que acabara de nascer.
"Precisava fazer solicitação de saída para que o interno fosse escoltado até o cartório. Antes, se ele não conseguisse dizer ao serviço social sua necessidade, ficava sem seu direito assegurado, invisibilizado na cela e sem acesso ao atendimento."
Hoje, ela afirma, há mecanismos para saber se houve acolhimento, como um programa de gestão com indicadores e metas, além do registro no prontuário de cada custodiado e de acompanhamento das equipes.
Em 2012, quando atuava na Unidade Prisional do Olho D'Água, em São Luís, Kelly pediu para ver as câmeras num dia de visitas de crianças. Não havia área para convívio social. Visitantes e detentos ficavam dentro do pavilhão.
Ela conta que ficou impactada quando viu uma garota por volta de 9 anos em uma roda de presos que jogavam damas. Todos estavam de cócaras, inclusive a menina, que usava um vestidinho. A mãe dela não estava ali.
Não havia separação entre encontro íntimo, visita social ou de criança.
As mulheres dos internos muitas vezes aproveitavam esse dia para entrar na cela com seus companheiros para se relacionar, afirma Kelly, e as crianças ficaram soltas no pavilhão sob a confiança de pessoas que não tinham nenhum vínculo afetivo com elas.
"Podia acontecer qualquer coisa ali, como um abuso. O próprio ambiente de carceragem não é [propício] para quem está em fase de desenvolvimento. A gente tinha relatos de prostituição de menores no interior das unidades. Aquilo me despertou para a situação de vulnerabilidade."
Foi ali que Kelly teve a ideia de substituir uma espécie de almoxarifado que havia no prédio por um espaço só para visitação infantil. Assim, não haveria mais crianças na área da carceragem e elas só teriam contato com aqueles que de fato fossem seus responsáveis.
Os Espaços de Vivência Infantil foram decorados de forma lúdica, com pinturas, cadeiras e mesas. O ambiente também virou uma área pedagógica, com atividades do serviço social aos detentos e seus filhos.
O projeto foi um sucesso e, quando Kelly assumiu o cargo de supervisora de assistência psicossocial na Secretaria de Administração Penitenciária, em 2015, o modelo foi exportado para todas as penitenciárias do Maranhão.
Ela explica que é preciso ter conhecimento sobre o contexto social e tomar precauções ao se implantar iniciativas como essas.
"Não se pode encher o espaço com brinquedos e tornar um parque de diversões, porque senão você coloca na cabeça daquele jovem que aquele lugar é bom, o passeio do domingo."
Em 2016, Kelly fez parte da equipe que atuou na implementação de Comissões Técnicas de Classificação nas 47 unidades prisionais do estado. O programa contribuiu para a transformação estrutural que levou o Maranhão ao primeiro lugar em educação e trabalho prisional no Brasil, segundo o Depen.
"O que acontece dentro das unidades interfere diretamente na sociedade. Se essas pessoas saem mais violentas, a violência retorna [à sociedade]."