À frente de ocupações, mulheres administram conflitos e afastam infiltrados

Por VICENTE VILARDAGA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Se há uma característica marcante do movimento dos sem-teto no centro de São Paulo é a liderança feminina. A maior parte das ocupações verticais organizadas na região é coordenada por mulheres.

É assim na 9 de Julho, onde Carmem Silva, 62, líder do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), encabeça um grupo que transformou a ocupação em um ambiente acolhedor e de convivência, com iniciativas culturais e gastronômicas. E também na Ocupação Mauá, na Ocupação São João e em outras dezenas espalhadas pela cidade.

Cabe a elas a responsabilidade de administrar conflitos nos prédios, impedir a presença de infiltrados do crime organizado e negociar avanços graduais com o poder público para garantir a segurança habitacional dos ocupantes.

Graças à dedicação de várias delas, o movimento dos sem-teto colhe cada vez mais frutos, como o da Ocupação Prestes Maia, que foi liderada por Ivaneti de Araújo, 49, coordenadora do Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ).

O prédio passará por um retrofit, projeto de engenharia para recuperar e modernizar a infraestrutura e melhorar as instalações de edificações antigas. Outras construções ocupadas no centro podem ter em breve o mesmo destino.

Atualmente, o MSTC coordena cinco ocupações na cidade, além de estar à frente do retrofit do hotel Cambridge, que passou a receber moradores em junho do ano passado. Ao todo, o imóvel deverá atender 121 famílias no rebatizado Residencial Cambridge.

"Sou uma mulher que chegou a São Paulo sem ter onde morar, sem trabalho e me achei uma refugiada no meu próprio país", diz Carmem. "Hoje, o meu pertencimento é participar ativamente da vida da cidade e nada mais justo do que devolver as oportunidades que encontrei para aqueles que não têm um entendimento dos próprios direitos."

Conhecida pelo seu rigor na administração, Carmem tem capacidade para converter ocupações em verdadeiros condomínios em que os moradores pagam mensalidades, seguem regras rígidas e participam de reuniões constantes para se politizar, se organizar e aumentar sua capacidade de resistência.

Depois da tragédia do Wilton Paes de Almeida, em 1º de maio de 2018, a atuação das mulheres se tornou ainda mais vigorosa por causa da perseguição ao movimento dos sem-teto e de prisões injustas, inclusive de dois filhos de Carmem Silva: Preta Ferreira e Sydnei Ferreira.

Ela própria foi presa em 2019, acusada pelo Ministério Público de ter expulsado do Cambridge moradores que deixaram de pagar a contribuição coletiva estabelecida pelo MSTC, o que se revelou uma mentira. Ela foi absolvida.

A Ocupação 9 de Julho abriga 129 famílias, cerca de 500 pessoas, que vivem num ambiente de respeito em que todos se ajudam e onde tudo funciona. Quando não funciona, é consertado. Talvez a principal questão pendente das mulheres que lideram o movimento seja a criminalização, a transformação da luta por moradia em crime que estigmatiza os moradores das ocupações.

Na Ocupação São João, no número 588 da avenida do mesmo nome, onde funcionava o antigo hotel Columbia, a principal liderança também é feminina. Trata-se da maranhense Antonia Nascimento, de 43 anos e mãe de três filhos, que atua na Frente de Luta por Moradia (FLM) e se dedica a pressionar a prefeitura para que reforme o edifício quase centenário e mantenha seus atuais moradores no mesmo lugar que estão hoje.

A ocupação abriga 70 famílias, cerca de 200 pessoas, e já superou quase todas as etapas burocráticas para se transformar num projeto residencial de verdade, mas o que falta se arrasta.

"O que sinto é que as mulheres são mais comprometidas do que os homens", diz Nascimento. "A gente tem mais capacidade de persistir na luta e pensa mais no próximo do que só em si mesma."

Não por acaso, a 7ª Jornada da Moradia Digna, que será realizada neste ano, terá como tema justamente as questões de gênero e da liderança feminina nas ocupações, além do antirracismo.

Para Ivaneti de Araújo, que hoje lidera a Ocupação Mauá, as mulheres estão na linha de frente do movimento por causa da determinação em proteger os filhos e a família. "A mulher se sente mais responsável do que o próprio homem, tem aquela pegada matriarcal. Por sermos mulheres, a gente não aceita determinadas situações, principalmente que mexam com nossos filhos."

Na avaliação dela, a primeira providência quando se faz uma ocupação é cuidar da manutenção geral e garantir a limpeza do local. Iniciada na luta junto com Carmem Silva, Araújo trabalha duro para que as ocupações onde atua tenham um funcionamento impecável, como um condomínio, inclusive com coordenadores por andar. Na Ocupação Mauá, paga-se o valor de R$ 200 por mês e a inadimplência chega a 70%.

Antonia e Ivaneti lideram duas ocupações que, neste momento, são fortes candidatas a receber um retrofit. Estão no topo da lista da prefeitura. Ao mesmo tempo, vivem sob a tensão da reintegração de posse.

A Ocupação Mauá, iniciada em 2007, é hoje a mais antiga e uma das maiores da cidade. Conta com 237 unidades habitacionais e abriga cerca de mil pessoas.

No último dia 25 de janeiro, os moradores receberam a notícia de que a Cohab pediu a reintegração de posse do imóvel e a saída dos moradores para que possam ser feitas as reformas necessárias para requalificar o prédio e fazer o retrofit.

Os ocupantes da Mauá, porém, consideram o pedido de reintegração uma traição e temem a falta de garantias da prefeitura para a saída e o retorno dos atuais moradores.

"Queremos um programa que atenda todas as famílias que estão aqui, mas acho que a prefeitura quer fazer outra coisa que não sabemos exatamente o que é", disse Araújo, afirmando que não houve qualquer conversa sobre a imediata reintegração de posse e que a Cohab teria agido na surdina.

O que a surpreende é que na Ocupação Prestes Maia, que foi desocupada para a realização de um retrofit, dentro do programa habitacional do município, o Pode Entrar, os trâmites foram diferentes e não foi necessário que as famílias deixassem o imóvel para a emissão de posse.

"O secretário municipal de Habitação, João Farias, até fala que quer atender toda a demanda aqui, mas a Cohab não concorda, não dialoga, vai ao Judiciário e quer que a gente saia daqui sem garantias", afirma.

Farias diz à Folha que a saída de todas as pessoas do prédio é necessária para que se faça a emissão de posse e o projeto de reforma seja executado e saia do papel. Garante também que os atuais moradores, pelo menos a grande maioria deles, voltarão depois do retrofit.

Mesmo assim, a vendedora ambulante Divina da Cunha, 65, está apavorada com a possibilidade de perder seu teto. Ela criou os três netos --Luis Henrique, Vitória e Isaac, de 16, 11 e 10 anos, respectivamente-- na Ocupação Mauá e teme ficar sem seu apartamento de cerca de 35 metros quadrados no sexto andar do prédio que pertenceu ao antigo hotel Santos Dumont.

Seria uma reviravolta em sua vida, que vem se organizando desde que ela passou a viver ali, em março de 2007. Os dois netos mais velhos de Divina estudam no Colégio Equipe, em Higienópolis, com bolsa de estudos, e o mais novo está na Escola Estadual Professora Marina Cintra. "Não sei o que fazer se for obrigada a sair", diz Divina.