Com Livraria Cultura ameaçada, público teme mais um vazio em São Paulo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Sob o dragão de madeira preso ao teto, Rosa Lemos, 54, gira o corpo com o celular apontado para as laterais do saguão cercado por rampas onde ficam estantes de madeira repletas de livros. "É um paraíso", escreveu na legenda do vídeo que mandou ao filho, que mora em Natal, no Rio Grande do Norte.
Pela primeira vez na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Rosa acompanhava o irmão Norman Lemos, 59, em uma viagem de negócios a São Paulo na última quarta-feira (8).
Empresário do ramo de papelaria na capital potiguar, ele frequenta a loja na avenida Paulista há duas décadas e quis presentear a irmã com a visita ao seu lugar favorito na cidade. "Isso não pode acabar, não pode virar mais uma loja para vender capas para celular", afirmou Norman.
No corredor acima, o diretor de tecnologia Felipe José Martins de Oliveira, 40, apresentava a livraria à filha Catarina, de dois anos. "Ela nasceu na pandemia e eu nunca a tinha trazido aqui", disse o carioca, há cinco anos morando na capital paulista. "Quando percebi que ainda estava aberta, pensei que poderia ser uma oportunidade única."
Sob o impacto da notícia da decretação de falência da livraria, suspensa provisoriamente após a Justiça acatar recurso da empresa, os frequentadores falavam sobre o local com tom de despedida e de preocupação. Afirmavam temer a ocupação do espaço por um supermercado, farmácia, serviço de saúde privado ou qualquer outra atividade com maior demanda.
Sérgio Herz, presidente do grupo, tranquiliza os frequentadores. Ele afirma que o modelo de negócio adotado na loja física desde novembro distribui custos e lucros com editores, tornando o estabelecimento sustentável. O negócio, batizado Hub Cultura, permite que o cliente compre diretamente da editora, além de favorecer a realização de eventos como encontros com autores. "Eu sei o que a Cultura da Paulista significa para São Paulo, não posso deixar que ela morra."
A virada de mesa da Cultura seria um contraponto ao histórico de empresas que, apesar da importância cultural e econômica para a cidade, sucumbiram ao perderem espaço na preferência do consumidor ou enfrentarem problemas de gestão irreparáveis. Locais que deixaram vazios na memória da cidade, mesmo nos casos em que os prédios foram ocupados, segundo Douglas Nascimento, pesquisador independente e fundador do Instituto São Paulo Antiga.
Emblemático, o encerramento em 1999 das atividades da loja de departamentos Mappin exemplifica esse tipo de vazio urbano que dificilmente pode ser compensado mesmo com a ocupação do local por outra empresa, diz Nascimento.
As Casas Bahia, que alugaram o edifício João Brícola, em frente ao Theatro Municipal, por duas décadas, não conseguiram cumprir esse papel e desocuparam o prédio no início deste mês.
Nascimento vê, especialmente na região central da cidade, a substituição de atividades empresariais diversificadas por varejistas focados na oferta de produtos baratos para consumo do público flutuante.
"Acho que falta uma política para atrair outras atividades, para que se volte a ocupar o centro. São Paulo está virando um grande Oxxo", disse, fazendo referência à rede mexicana de lojas de conveniência com grande presença na capital paulista.
No entorno do antigo Mappin, há exemplos de decadência em todas as direções. Desde a cinelândia paulistana com suas salas para mais de 3.000 espectadores, como o extinto e vazio Cine Art-Palácio, ao Othon Palace Hotel, ícone da hotelaria nacional que hoje abriga repartições da prefeitura.
Para o pesquisador, São Paulo tem uma característica de não manter atividades empresariais em um mesmo local por muito tempo. "A cidade anda, talvez porque o mercado imobiliário a faça andar, e vai deixando locais que foram importantes para trás."
Ele cita outros exemplos fora da região central, como a antiga sede da Companhia Antarctica Paulista, na Mooca, na zona leste. O complexo industrial, um dos maiores que a cidade já teve, deixou de funcionar em 1995. O edifício pertence à Prevent Sênior desde 2019.
O grupo chegou a anunciar a criação de um complexo de saúde e lazer voltado à terceira idade, mas a ideia não avançou. A empresa disse nesta semana que estuda o que fará no local.
Avesso à nostalgia, o arquiteto Silvio Oksman, 51, sócio do escritório Metrópole, afirmou que é praticamente impossível interromper a dinâmica que aniquila negócios que cativaram paulistanos ao longo do tempo.
"São dinâmicas da sociedade e a cidade reflete a sociedade", disse. "Se agora a paisagem é repleta de mercados, lojas para pets e farmácias, é porque as pessoas escolheram isso."
"Não dá para manter uma empresa quebrada apenas porque ela tem valor afetivo. Não se tomba uma videolocadora porque ela vai mofar", completa Oksman.
Questionada sobre políticas públicas e de incentivo para a manutenção de atividades empresariais importantes para a cidade, a Prefeitura de São Paulo não comentou.