Já perdemos milhares no Brasil por negligência com clima, diz secretária de ambiente do Rio

Por CRISTIANE FONTES

Chuva que atingiu litoral de SP é a mais intensa da história...

OXFORD, INGLATERRA (FOLHAPRESS) - A nova secretária municipal de Ambiente e Clima do Rio de Janeiro cresceu em meio aos problemas que, desde o último mês, passou a ter a missão de resolver no trabalho. Nascida na Praça Seca, na comunidade do Loteamento, zona oeste da cidade, Tainá de Paula diz ter percebido cedo que a discussão sobre sustentabilidade só alcançava locais distantes dali.

"Trinta anos se passaram e água ainda é um tema muito forte na favela de onde eu vim. Temos índices de precipitações talvez dos maiores da América Latina e ainda não tem uma discussão mais ampla sobre isso", afirma a arquiteta, eleita vereadora pelo PT em 2020.

Na raiz da questão, ela avalia, está o racismo, que se traduz em falta de investimentos nas áreas periféricas.

"Nós perdemos no Brasil milhares de pessoas nos últimos dez anos por conta da negligência, da ausência de uma política séria de mitigação dos danos vindos da inconstância climática", destaca, citando a recente tragédia de São Sebastião (SP) e as chuvas de Petrópolis (RJ).

Para o Rio, diz a secretária, uma das prioridades é o cuidado com o lixo, que, segundo ela, está na origem de 70% dos alagamentos. Ele é também vilão pelas emissões de gases originadas com o descarte inadequado.

Para além de recursos financeiros, como soluções para esses nós, Tainá vê a educação ambiental e o papel de guardião dos próprios moradores. Remoções, por outro lado, não devem estar no centro das ações, diz.

"Determinados territórios podem se tornar comunidades ecológicas, sustentáveis, com realocações dentro do seu próprio território, onde as encostas não sejam as mais íngremes a serem ocupadas, mas aquelas que conseguem permitir soluções de arquitetura e engenharia possíveis", afirma.

"É muito importante que se diga que os ricos continuam morando nas encostas e continuam acessando soluções de geotecnia e engenharia", argumenta ainda.

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PERGUNTA - Como a agenda socioambiental e de justiça climática chegou à sua vida profissional?

TAINÁ DE PAULA - Desde muito jovem, comecei a entender que a discussão da sustentabilidade só alcançava determinados territórios e determinadas faixas de renda. Era muito difícil implementar um projeto sustentável de urbanização de favela, por exemplo.

Uma placa solar, se hoje ela ainda é cara, há 20 anos, ela era muito mais cara. E uma implementação de projeto de água de reúso, ou de fossa, filtro e sumidouro sustentáveis era muito mais cara e inacessível justamente naqueles territórios que mais precisavam.

 

P - Como remodelar as cidades em tempos de emergência climática?

TP - É muito importante que a gente faça uma agenda de reparação àqueles que foram historicamente impactados. Existe uma negação da crise climática muito grande ainda, e isso é reflexo da nossa péssima educação ambiental, da péssima adesão dos setores produtivos que se beneficiam das matrizes do extrativismo, desmatamento, deste modo de produção capitalista brasileiro.

Existe uma lógica de racismo global que impacta não só o Brasil, mas a América Latina, numa lógica de país de descarte.

Nós percebemos recentemente as chuvas do litoral norte de São Paulo, as chuvas que aconteceram aqui no estado do Rio de Janeiro, tanto na capital do Rio quanto em Petrópolis. Nós perdemos no Brasil milhares de pessoas nos últimos dez anos por conta da negligência, da ausência de uma política séria de mitigação dos danos vindos da inconstância climática. Precisamos de recursos para enfrentar e, claro, recurso atrelado ao planejamento.

Existe um modelo posto nacionalmente o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima [de 2016]. É muito importante que se diga que ele precisa ser revisto pela ministra Marina Silva, mas o mais importante que ela tem feito é estimular a discussão da crise e reivindicar a corresponsabilidade dos países do Norte.

 

P - Estudos apontam a Região Metropolitana do Rio de Janeiro entre as mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas do Brasil. Quais são as suas prioridades como secretária?

TP - A gente vai construir uma agenda de reparação e enfrentamento à crise climática. Isso já passou da hora no Rio de Janeiro. É muito importante que a gente tenha orçamento específico para o enfrentamento de crises.

Todo ano chove um volume de precipitação que é equiparável às grandes chuvas históricas do Rio. Nosso regime de chuvas se alterou, isso é uma realidade, e vem impactando muito os territórios de favelas.

E como é que a gente dá robustez à nossa agenda de reflorestamento? O Rio de Janeiro vem perdendo cerca de um estádio por mês na zona oeste profunda, nas áreas periféricas, muito por conta da atuação da milícia.

Como é que a gente faz uma transição energética na cidade do Rio de Janeiro? Como é que a gente multa, retira a licença dos setores industriais da cidade que são os mais poluentes? Como é que a gente consegue apresentar uma agenda positiva para esse controle dos gases?

O Rio de Janeiro é recordista de emissão de gases de efeito estufa no setor de resíduos sólidos. A gente ganha de cidades como São Paulo e Cubatão. Isso é uma negligência profunda e está atrelado diretamente ao racismo ambiental. A gente quer lançar um programa específico de resíduos sólidos para as favelas.

 

P - Qual será a sua principal agenda em termos de adaptação às mudanças climáticas?

TP - O primeiro passo é implementar ações locais de identificação e controle das enchentes. Existe essa dívida com o morador do Rio de Janeiro. Obras de engenharia precisam ser feitas em diversos pontos da cidade e esses pontos já estão sendo mapeados pela minha equipe.

O lixo origina basicamente 70% das ocorrências de alagamentos e enchentes no Rio de Janeiro. A limpeza e a dragagem dos rios, associadas à limpeza de ralos e valões, fariam uma redução drástica do caos que acontece ciclicamente na cidade. Além disso, estamos iniciando um processo de contratação em massa de guardiões para os territórios que mais alagam.

 

P- A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, de 2012, prevê a realocação da população residente em áreas de risco. O que acha disso?

TP - O Rio de Janeiro vive um drama em relação aos processos de remoção. Historicamente, foi balão de ensaio dos processos de remoção. E é muito importante nós criarmos planos estratégicos locais, caso a caso.

Nós já tentamos a remoção em massa, principalmente nas encostas das áreas centrais e na zona sul, e isso foi utilizado politicamente por diversos gestores do passado como uma chancela para eugenia e limpeza social. É muito importante que se diga que os ricos continuam morando nas encostas e continuam acessando soluções de geotecnia e engenharia para permanecer nessas encostas. Nós precisamos separar o joio do trigo.

Tenho enfrentado essa discussão no projeto Cada Favela Uma Floresta, inserindo reutilização de água de chuva, reflorestamento e utilização de energia solar e, claro, obras de saneamento.

Precisamos entender que determinados territórios podem se tornar comunidades ecológicas, sustentáveis, com realocações dentro do seu próprio território, onde as encostas não sejam as mais íngremes a serem ocupadas, mas aquelas que conseguem permitir soluções de arquitetura e engenharia possíveis.

 

P - A senhora já criticou a concentração de recursos e capacidade em âmbito nacional. Como pretende como assegurar mais recursos?

TP - Já tenho uma conversa com a ministra Marina [Silva] para apresentar uma ideia de governança metropolitana climática que se faz urgente. É fato que uma cidade como o Rio de Janeiro precisa ter um fundo de resiliência climática ambiental.

Como uma cidade como essa vai conseguir ter recursos próprios para construir tantos piscinões, tantas soluções de engenharia, de geotecnia para dar conta dos seus processos de inundação e de alagamento? Precisamos de ajuda federal e estadual.

 

P - A senhora não acha que termos como "racismo ambiental" e "justiça climática" podem soar muito abstratos para a população?

TP - Eu uso muito nos meus textos, nos meus artigos, mas no popular a gente fala de desigualdade e pobreza. É o que as pessoas entendem.

As pessoas só entendem a vulnerabilidade quando conseguimos explicitar como isso impacta a vida delas. Todo mundo sabe o impacto de uma água suja numa criança, numa determinada família. Todo mundo sabe o que é diarreia. Todo mundo sabe o peso que é você não ter um banheiro dentro da sua casa.

O Rio de Janeiro é uma das cidades com maior número de fossa seca de banheiro externo do Brasil. E nós temos um dos maiores PIBs do Brasil também. O carioca, o fluminense e [e as pessoas de] todas as cidades com muitas injustiças colocadas banalizam essas injustiças. É preciso construir consciência de reparação e de equidade climática.

 

P - E como fomentar uma cultura de prevenção com os moradores de áreas de risco?

TP - A gente acabou de formar a primeira turma de líderes climáticos populares da cidade. Nós queremos dar robustez a esse programa e criar uma rede local de lideranças.

O Rio de Janeiro é uma das cidades recordistas em hortas em favelas, mas muitas são abandonadas pela ausência de pertencimento dos territórios sobre essa horta. Isso acontece também com áreas de reflorestamento e de limpeza de rio.

Lançamos também o programa Guardiãs da Mata, com mulheres das favelas do Rio. Vamos plantar árvores frutíferas em todas as favelas e construir essa nova ambiência.

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RAIO-X

Tainá de Paula, 40

É arquiteta e urbanista, formada pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e mestre pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Foi eleita vereadora do Rio de Janeiro pelo PT em 2020. Em fevereiro deste ano, tornou-se secretária municipal de Ambiente e Clima. Já deu assistência a movimentos como União de Moradia Popular e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).